Carta ao Leitor: Inimigo íntimo
O PT exerce hoje o incômodo papel de adversário da tentativa do governo de caminhar para o centro

Não há dúvidas de que os ventos sopram cada vez mais fortes para a centro-direita na política brasileira. Exemplo disso foi o resultado das eleições municipais deste ano, quando partidos como PSD, MDB, PP, União Brasil e PL conquistaram um número robusto de prefeituras pelo país. Com base na experiência e no faro político acima da média, Lula já havia identificado essa onda em 2022 — e embarcou nela com o pragmatismo de sempre. Ele voltou ao Palácio do Planalto exibindo na campanha o ex-tucano Geraldo Alckmin como uma espécie de atestado de que seu futuro governo não caminharia em direção ao extremo. Reforçou essa mensagem carregando para a Esplanada outra ex-adversária, a emedebista Simone Tebet. Já empossado, acolheu em seu ministério vários membros de partidos de fora do espectro da esquerda e conta com essas forças para construir o palanque de reeleição em 2026.
Falta apenas combinar toda essa acertada estratégia com o PT. O partido de Lula exerce hoje o incômodo papel de adversário da tentativa do governo de caminhar para o centro. Num movimento permanente de autossabotagem, a sigla parece disposta a ir frontalmente na contramão de várias frentes do presidente. Para a comandante do partido, a deputada Gleisi Hoffmann, a opção pelo bom senso é inimaginável. “Pode ser a morte do PT”, disse ela em uma entrevista recente, segundo o raciocínio de que isso implicaria abandonar a base social do partido. Para a legenda, portanto, não há nuances. Existem apenas o mal (a entidade “mercado”) e o bem (representado pelos anseios petistas).

Várias outras manifestações no mesmo sentido foram vistas no seminário realizado pelo PT nos últimos dias para discutir a realidade brasileira, evento que reuniu em Brasília militantes e autoridades da agremiação. Lula falou por teleconferência. No lugar de pacificação, ouviram-se críticas a “máquinas municipais de aliados da base” e propostas para reforçar a polarização com o bolsonarismo e esticar a corda diante das Forças Armadas, às vésperas do delicado julgamento de militares graúdos envolvidos no plano de um golpe para impedir a posse de Lula. Não parou por aí. Enquanto o governo tenta demonstrar que está disposto a equilibrar melhor as contas, foi declarada guerra à Faria Lima e ao mercado. Principal responsável pelo plano fiscal, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, recebeu uma espécie de ultimato: “Não será possível uma solução que agrade ao mercado e à nossa base”.
Por essas e outras, o PT funciona hoje como uma espécie de inimigo íntimo de Lula. É claro que parte dessa dissonância é, muitas vezes, jogo de cena. Nas oportunidades em que sente necessidade de passar determinados recados, o próprio presidente dá corda para que vozes petistas manifestem essas excentricidades. A situação atual, porém, é mais sensível, pois a legenda nunca deu tantos sinais explícitos de que vai pressionar cada vez mais o governo à esquerda. Lula, que ressaltou a necessidade de “governar para todos”, terá de lidar com isso em meio ao complexo esforço de composição política com as forças do Congresso, majoritariamente de direita, além dos enormes problemas econômicos do país — cujas soluções, aliás, não passam pelo receituário petista. Não será fácil. Com companheiros assim ao seu lado, o desafio (que já não é nada simples) se tornará gigantesco.
Publicado em VEJA de 13 de dezembro de 2024, edição nº 2923