Barbaridades em série: a investigação desastrosa do caso Marielle
Depoimento mentiroso que tentava ligar Bolsonaro aos assassinos é mais um triste capítulo de um crime que completa 600 dias sem solução
A execução da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes não para de produzir notícias espantosas, a começar pelo tempo de 600 dias sem que o caso tenha uma solução, um prodígio até para os padrões indigentes de produtividade da polícia nacional. Quem matou? Quem mandou matar? As famílias das vítimas e toda a sociedade brasileira aguardam até hoje essas respostas, em vão. Cercada de confusões de todo tipo, a investigação jogou mais dúvidas do que luzes sobre o episódio. Quando se imaginava que nada de pior poderia acontecer depois desse roteiro lamentável, eis que no último dia 29 surgiu a notícia de uma possível conexão de Jair Bolsonaro com a história. Embora essa ligação tenha sido formalizada em depoimento à polícia, ficou claro logo depois que ela não fazia sentido. Mesmo sendo mentirosa, foi suficiente para o caso do crime sem fim atingir um novo patamar em termos de polêmica e de agitação política.
O envolvimento do nome de Bolsonaro no enredo do crime surgiu em uma reportagem do Jornal Nacional, da Rede Globo. A Polícia Civil do Rio de Janeiro teve acesso ao caderno de visitas do condomínio Vivendas da Barra, na Zona Oeste do Rio, onde têm casa o presidente e o ex-policial militar Ronnie Lessa, acusado das mortes de Marielle e de Anderson. No dia 14 março de 2018, às 17h10, pouco mais de quatro horas antes do crime, o ex-PM Élcio Queiroz, outro suspeito dos assassinatos, a bordo de um Logan Prata, anunciou na portaria do condomínio que iria visitar Jair Bolsonaro e acabou indo até a casa de Lessa. À polícia, o porteiro afirmou que, a pedido de Élcio, ligara para a casa 58, onde vive o presidente. E que uma pessoa que ele identificou como sendo o “seu Jair” liberara a entrada. Élcio, no entanto, dirigiu-se à casa 65, onde mora Ronnie Lessa. O porteiro, então, telefonou novamente, e o mesmo “seu Jair” teria dito que sabia para onde ele estava indo. Conforme a reportagem, no dia da visita, no entanto, Bolsonaro estava em Brasília, e não no Rio. O então deputado federal registrou a presença em duas votações na Câmara. Lessa é acusado pela polícia de ser o autor dos disparos contra Marielle e Anderson. Élcio, por sua vez, é suspeito de ser o motorista do carro que levava o matador. Os dois foram presos em 12 de março.
Bolsonaro recebeu a notícia no exterior, em meio à viagem para captar investimentos na Ásia e no Oriente Médio. Em uma live transmitida da madrugada da Arábia Saudita, negou qualquer ligação com os suspeitos dos assassinatos, reclamou do vazamento de informações de um processo que corre sob sigilo e reagiu de forma furiosa às insinuações. Seu alvo principal foi a imprensa, classificada por ele de “porca” e “nojenta”. “Vocês são patifes, canalhas, não são patriotas”, vociferou, dirigindo os ataques principalmente à Rede Globo. No momento de maior destempero, ameaçou cancelar a concessão pública da emissora, que vence em 2022, uma ameaça absurda e injustificável, mesmo levando-se em conta o momento de indignação do presidente, que tem certeza de ser vítima de injustiça e perseguição no caso.
A própria reportagem do Jornal Nacional já deixava claro um problema grave no depoimento do porteiro. Como se viu, no dia em que ele diz ter interfonado para a casa de “seu Jair”, Bolsonaro encontrava-se em Brasília. Além disso, se os suspeitos do crime agiam em conluio com o presidente, o normal seria tentar despistar essa ligação a todo custo. Dentro dessa lógica, entrar no condomínio a pretexto de ir à residência de Bolsonaro para depois se dirigir ao endereço do comparsa não faz o menor sentido. Um dia após a reportagem do Jornal Nacional, surgiu outra prova robusta contra o depoimento do porteiro. Em vídeo divulgado nas redes sociais, um dos filhos do presidente, Carlos Bolsonaro, que tem casa no mesmo condomínio, mostrou arquivos de todas as gravações das chamadas da portaria para as residências do Vivendas da Barra no dia do assassinato de Marielle. Um dos áudios revela que Élcio, ao chegar ao local, mandou interfonar para a casa 65, ou seja, a residência de Ronnie.
Na mesma quarta, conforme antecipou o site de VEJA, o Ministério Público já dava como certo que o porteiro havia mentido no depoimento. “Pode ter sido um equívoco, pode ter sido por vários motivos que o porteiro mencionou a casa 58 (de Jair Bolsonaro). E eles serão apurados”, afirmou a promotora Simone Sibilio. Os áudios do condomínio passaram por perícia e foram incorporados ao processo. Depois de classificar a notícia como “factoide”, o procurador-geral da República, Augusto Aras, anunciou o arquivamento da investigação sobre a menção ao nome do presidente no episódio do assassinato enviada pelo MP do Rio ao STF.
Na defesa do presidente, o ministro da Justiça, Sergio Moro, destacou-se entre os mais afoitos, ao enviar ofício à Procuradoria-Geral da União no qual pedia que instâncias superiores ouvissem a testemunha que implicara Bolsonaro. Ao mais uma vez extrapolar seu papel, Moro recebeu críticas merecidas. “Ele usa seu cargo para atuar como advogado de Bolsonaro”, afirma o ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior. Frederick Wassef, que é o verdadeiro advogado do presidente, classificou o episódio do porteiro como “uma armação barata e de baixíssimo nível”. “Ela foi feita e arquitetada por pessoas do Rio, que plantaram uma testemunha e pediram a um indivíduo que mentisse deliberadamente”, acusa. O próprio Bolsonaro encarregou-se de ir mais adiante nessa suspeita, dando nome aos bois. Ao citar uma revelação feita pela coluna Radar, do site de VEJA, a de que o governador fluminense Wilson Witzel sabia com antecedência do depoimento do porteiro, o presidente acusou o político do PSC de manobrar para tentar destruí-lo tendo como objetivo a conquista de mais espaço para se credenciar às eleições de 2022 ao Palácio do Planalto. Witzel negou, mas Bolsonaro continuou batendo na tecla ao lembrar de um encontro entre os dois ocorrido em 9 de outubro no Clube Naval do Rio. Na ocasião, segundo Bolsonaro, Witzel lhe revelou que o porteiro havia citado seu nome no depoimento.
Brasília entrou em polvorosa com a repercussão política do novo escândalo. Na quarta, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), decidiu despachar de sua residência. “Se ele fosse para o Senado, a oposição passaria o dia na tribuna explorando a crise”, afirma um dos interlocutores que foram à casa de Alcolumbre. Muitos parlamentares mantiveram cautela ao avaliar o episódio. “Nunca fui bolsonarista, mas acho que todos só devem ser ‘condenados’ se comprovado definitivamente o erro”, afirma o ex-governador de São Paulo Márcio França (PSB). O deputado Elmar Nascimento (DEM-BA), líder da legenda na Câmara, declarou que o episódio em si foi superado, mas a preocupação continua. “O clima político está muito carregado. Afinal, alguém tentou envolver o presidente em um crime, o que é grave e precisa ser esclarecido”, diz.
A história marca o ápice de um caso repleto de confusões e trapalhadas de todo tipo. Vários mandantes já foram apontados, e houve até uma tentativa de sabotagem nos trabalhos para incriminar rivais. Boa parte das trombadas ocorre por disputas entre autoridades que deveriam trabalhar juntas, mas, na prática, atuam como concorrentes. Polícia Civil e Ministério Público se vangloriam do fato de que a investigação da morte de Marielle resultou em frutos não esperados, como a desarticulação da mais antiga milícia carioca, em Rio das Pedras, na Zona Oeste, a revelação da existência do Escritório do Crime, grupo de matadores por trás de diversos homicídios não esclarecidos no Rio, e do esquema de tráfico de armas liderado por Ronnie Lessa. Mas não é raro ouvir críticas de delegados a promotores e vice-versa: para além da discordância de métodos, há disputa intensa por protagonismo. O pedido de federalização do caso, feito pela ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge, embaralhou ainda mais a história. Enquanto o Superior Tribunal de Justiça não decide se o inquérito muda de competência, veio à tona, junto com o pedido, a existência de um áudio no qual um miliciano diz que a morte de Marielle foi encomendada por Domingos Brazão, conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Estado, junto a Élcio Queiroz e Ronnie Lessa. O problema: nem a Polícia Civil do Rio nem o Ministério Público acreditam totalmente no relato. “Não há nenhuma prova concreta que envolva Domingos Brazão”, afirma a promotora Simone Sibilio.
Horas depois do assassinato de Marielle e Anderson, quase todos os pré-candidatos à Presidência divulgaram notas de pesar. Jair Bolsonaro preferiu ficar mudo. Quando questionado, disse que sua opinião “seria polêmica demais”. Ao longo dos meses, entre o silêncio e declarações de menosprezo ao episódio, o clã passou a criticar a repercussão do caso Marielle em momentos pontuais — o vereador Carlos, por exemplo, criticou a Mangueira por usar o nome dela em um samba no Carnaval carioca de 2019. Em março, quando os suspeitos foram presos, circularam na internet fotos de Bolsonaro ao lado de Élcio. Logo também veio à tona a informação de que o atirador era vizinho do presidente. Embora demonstrem uma proximidade desagradável, essas coincidências nada provam. A filha mais velha de Ronnie Lessa, Mohana, disse a VEJA que sua família não tinha contato com os parentes do presidente: “Eu vi o Bolsonaro duas vezes indo para a praia com a filha menor e a Michelle passeando com o cachorrinho. E só”.
Colega de Marielle na Câmara de Vereadores do Rio, Carlos Bolsonaro deu um depoimento aos policiais logo no começo das investigações devido a uma discussão ocorrida antes do crime. Um assessor de Marielle andava pelo corredor mostrando o prédio a dois amigos quando, em frente ao gabinete 905, de Carlos, comentou que ali ficava o filho de um deputado “ultraconservador” que beirava o “fascismo”. O Zero Dois ouviu tudo e, aos berros, começou a discutir, até que Marielle apareceu, colocando panos quentes. Desde a briga, Carlos passou a evitar até entrar no elevador se Marielle ou assessores dela estivessem presentes. A Polícia Civil do Rio voltou a se debruçar sobre essa velha história neste mês. Pelo menos quatro ex-funcionários de Carlos foram ouvidos até agora. Mas mesmo adversários políticos não acreditam nessa hipótese. Pessoas próximas à vereadora receberam com preocupação a notícia de que essa linha de investigação havia sido reaberta, uma vez que não veem, ali, motivo suficiente para que alguém tivesse ordenado a execução. Avaliam, também, que o movimento dá indícios de que a polícia não sabe por onde seguir.
Foi nesse enredo tragicamente rocambolesco que o nome do presidente acabou envolvido. Destemperos à parte, Bolsonaro, que já sofreu uma tentativa de assassinato, agora tem razão em reclamar de que atentaram contra sua honra com base em um depoimento fajuto. Pode-se não gostar dele por sua visão simplória e paranoica de mundo, por seu gosto por ditaduras e por sua incapacidade de administrar a nação em paz, entre outros tantos motivos. A despeito dessas críticas, justas ou não, ninguém pode ser vítima de uma insinuação de tamanha gravidade sem provas — muito menos a maior autoridade do país. Esse enredo triste e irresponsável tampouco faz justiça às vítimas, às famílias de Marielle Franco e Anderson Gomes e a todos os brasileiros que acreditam na busca da verdade. O Brasil não pode mais conviver com isso. Está mais do que na hora de acabar com o mistério do crime sem fim.
HISTÓRIA TUMULTUADA
O inquérito acumula depoimentos falsos, troca de investigadores e obstrução de Justiça
• 8 de maio de 2018
Uma testemunha que diz ter trabalhado para uma milícia do Rio de Janeiro procura a polícia para acusar, em troca de proteção, o vereador Marcello Siciliano (PHS) e o ex-policial militar Orlando Curicica de serem os mandantes do assassinato da vereadora.
• 24 de julho de 2018
O ex-PM Alan Nogueira e o ex-bombeiro Luis Cláudio Ferreira Barbosa são presos por suspeita de participação no assassinato. Eles teriam agido a mando de Orlando Curicica.
• 9 de agosto de 2018
A Polícia Civil do Rio investiga um possível envolvimento dos deputados estaduais Jorge Picciani, ex-presidente da Assembleia Legislativa do Rio, Paulo Melo e Edson Albertassi, todos do MDB, no assassinato, em uma suposta retaliação à atuação do, à época, deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL), amigo de Marielle. Não foi confirmada a participação de nenhum deles.
• 1º de setembro de 2018
A cúpula do Ministério Público do Rio de Janeiro é trocada e toda a equipe envolvida no caso também muda. A Coordenadoria de Segurança e Inteligência (CSI) passa a participar das investigações.
• 1º de novembro de 2018
O então ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, anuncia a entrada da Polícia Federal no caso com o objetivo de investigar a existência de um esquema criminoso para acobertar a elucidação do assassinato.
• 12 de março de 2019
A polícia prende o PM reformado Ronnie Lessa, 48, e o ex-policial militar Élcio Vieira de Queiroz, 46, como autores do assassinato. O primeiro teria atirado, enquanto o segundo teria dirigido o carro usado no crime.
• 13 de março de 2019
O delegado do caso, Giniton Lages, deixa o cargo para fazer intercâmbio na Itália. Durante as investigações, ele foi acusado de pressionar testemunhas para confirmar o envolvimento de Curicica e Siciliano.
• 31 de maio de 2019
O policial militar Rodrigo Jorge Ferreira, conhecido como Ferreirinha, é preso por mentir em depoimento à polícia ao acusar Curicica pelo crime. Ele confessou que mentiu com o objetivo de se vingar de Curicica, que havia tomado sua central clandestina de TV a cabo em uma área da Zona Oeste do Rio.
• 2 de julho de 2019
Um pescador afirma à polícia que um aliado de Ronnie Lessa contratou seu barco e jogou seis fuzis em alto-mar — possivelmente incluindo a submetralhadora HK MP5, que teria sido usada para matar Marielle —, logo depois que o policial foi preso e antes do cumprimento de um mandado de busca e apreensão. Posteriormente, a polícia concluiu que foi Elaine Lessa, mulher de Ronnie, quem comandara a operação. Com ela, foram detidos Bruno Figueiredo, Márcio Montavano e Josinaldo Freitas, todos acusados de obstrução de Justiça.
• 17 de setembro de 2019
Em seu último dia no cargo, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, determina a abertura de novo inquérito sobre o assassinato e acusa Domingos Brazão, conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Rio, de obstruir a apuração. Depois, ele se tornaria suspeito de ser o mandante do crime.
Colaboraram Edoardo Ghirotto e Roberta Paduan
Publicado em VEJA de 6 de novembro de 2019, edição nº 2659