Os áudios inéditos da mulher de Queiroz: “Eu não estou aguentando”
Gravações mostram por que Márcia de Aguiar era — e ainda é — a principal aposta do MP para elucidar o caso das rachadinhas
Desde o início da investigação do esquema de rachadinha, o senador Flávio Bolsonaro aposta as suas fichas nos tribunais superiores, em Brasília, para conseguir o arquivamento do caso. Ainda não se sabe se a estratégia dará certo, mas a mais recente decisão judicial favoreceu, pelo menos indiretamente, o filho mais velho do presidente da República. No último dia 14, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes restabeleceu o regime de prisão domiciliar do policial militar aposentado Fabrício Queiroz e da mulher dele, Márcia de Aguiar, apenas um dia depois de o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Felix Fischer, ter ordenado que o casal fosse preso. A decisão de Mendes teve como efeito serenar os ânimos de Queiroz e Márcia, que trabalharam no gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) e são considerados pelo Ministério Público testemunhas capazes de esclarecer se o Zero Um embolsou parte dos salários dos servidores na Alerj e, assim, cometeu os crimes de peculato, lavagem de dinheiro e formação de organização criminosa.
“EU NÃO ESTOU AGUENTANDO”
“A nossa família está desmoronada, Ana, e eu estou assim emocionalmente abalada. A minha depressão sei que voltou, porque eu vivo chorando pelos cantos. Eu vivo chorando, entendeu? Na minha vida eu sempre fui uma mulher muito forte, mas eu não estou aguentando essa onda sozinha…”
“Só que eu não estou aguentando, você está entendendo? Não estou aguentando. Está muito difícil, amiga, está muito difícil, está muito difícil. Só Deus sabe. Só Deus para me ajudar a seguir. Porque não tenho vontade de fazer nada, nada, nada, de fazer comida, de fazer nada. Não tenho vontade de sair. Não vontade de me arrumar. Não tenho. Cheguei a um estágio emocional, amiga, que está…”
“A gente não é foragido. Isso está acabando comigo, amiga, acabando. De boa mesmo. Está acabando. Está me destruindo por dentro. Eu estou aqui me desabafando, porque não consigo passar isso para ele. Porque se eu passar o estado emocional que estou, como estou falando com você, para o Queiroz, ele vai ficar desesperado. Porque a força dele é em mim aqui…”
“A minha depressão veio assim forte, porque estou exatamente desse jeito que você está vendo aqui, emocionalmente destruída, destruída. Se eu passar isso para o Queiroz, ele não vai aguentar, porque ele acha que sou forte. Só que eu não sou, como ele também não é”, diz Márcia em mensagem de áudio enviada em novembro de 2019
Amigo de Jair Bolsonaro há mais de trinta anos e suspeito de ser laranja da primeira-família da República, Queiroz nunca demonstrou interesse em revelar os seus segredos, tanto que ficou um ano escondido até ser preso num imóvel em Atibaia (SP) pertencente a Frederick Wassef, advogado dos Bolsonaro na época da prisão. A promessa de lealdade de Queiroz é simples: manter o silêncio enquanto a sua família for preservada. Um áudio revelado pelo site de VEJA em abril passado deixou claros os termos dessa combinação. Nele, Queiroz agradece a um interlocutor não identificado: “Gratidão não prescreve, cara, não prescreve mesmo. O que você está fazendo pelas minhas filhas aí, cara, não tem preço”. Esse roteiro silente era seguido tal qual o combinado até a decretação da prisão preventiva do PM aposentado e da mulher dele, sob a acusação de obstruírem as investigações. Márcia não aceitou a cadeia e fugiu até o casal conseguir o direito à prisão domiciliar. Enquanto esteve foragida, consolidou-se entre investigadores e no entorno de Flávio Bolsonaro a percepção de que ela é o elo mais frágil dessa cadeia de blindagem, a testemunha que, sob pressão, pode revelar detalhes de como funcionou o esquema de rachadinha e, principalmente, se a família Bolsonaro se beneficiou dele.
VEJA teve acesso a mensagens colhidas no celular de Márcia, alvo de busca e apreensão em dezembro passado, que mostram ser pertinente a percepção sobre o potencial explosivo da mulher de Queiroz. Em áudios e textos trocados com a advogada Ana Flávia Rigamonti, contratada por Wassef e companhia constante de Queiroz no imóvel em Atibaia, Márcia se diz emocionalmente abalada e reclama do fato de Queiroz ser obrigado a viver escondido. Mais: insinua que o marido era coagido a se manter longe dos holofotes, das explicações e dos esclarecimentos necessários. O silêncio, portanto, não seria uma mera opção pessoal. “A nossa família está desmoronada, Ana, e eu estou assim emocionalmente abalada”, disse Márcia em novembro de 2019. Naquela ocasião, o STF estava prestes a decidir até que ponto o Coaf, o órgão oficial de combate à lavagem de dinheiro, poderia compartilhar informações com o Ministério Público. A decisão interessava aos protagonistas da rachadinha, porque poderia resultar no arquivamento do caso, o que não aconteceu. “Não estou aguentando. Está muito difícil, amiga (…) A minha depressão veio assim forte, porque estou exatamente desse jeito que você está vendo aqui, emocionalmente destruída, destruída. Se eu passar isso para o Queiroz, ele não vai aguentar, porque ele acha que sou forte. Só que eu não sou, como ele também não é.”
“Estou muito preocupada com o Queiroz (…) Ele anda muito abalado emocionalmente, com o stress à flor da pele (…) Ele está no limite dele. E a minha preocupação é esse stress, esse emocional dele abalado, piorar a situação dele com essa doença”, diz Márcia, em mensagem de áudio enviada em novembro de 2019
Em outro áudio, Márcia confessou a Ana Flávia que se sentia agoniada porque não podia falar sobre a sua vida com ninguém, nem desabafar com as suas amigas. Ela contou que, ao longo de um ano, teve de abrir mão de sua vida particular, privar-se de ir ao médico até para fazer exames de rotina e, em alguns momentos, não podia sequer utilizar o celular. Todas essas cautelas faziam parte das orientações dadas pelo “Anjo”, que queria manter sob segredo o paradeiro de Queiroz. O Ministério Público do Rio desconfia que o Anjo seja o advogado Frederick Wassef, que nega o apelido e a acusação nele embutida. “A nossa vida está sendo regida por ele, pelo que ele quer”, disse Márcia. “A gente não é foragido. Ah, que saco. Eu já não estou aguentando mais essa situação, amiga. Não estou. Ganhando ou não ganhando, o nosso nome vai ficar na mídia, o nome do Queiroz vai ficar na mídia por muito tempo.” As mensagens revelam ainda que o “Anjo” pretendia alugar uma casa em São Paulo para esconder toda a família do policial militar aposentado. A ideia era tirar todos de cena. Márcia não concordava. Queiroz, aparentemente, também não. “Ele anda muito abalado emocionalmente, com o stress à flor da pele”, relatou Márcia, referindo-se ao marido. “Ele está no limite dele. E a minha preocupação é esse stress, esse emocional dele abalado, piorar a situação dele com a doença.”
Em resposta, Ana Flávia diz que Queiroz reclamou da situação para o “Anjo”: “Eu sei que ele não está bem. Igual você falou: ele tenta mostrar que está bem e tudo. (…) Ele está tentando se distrair. Mas a gente sabe que não está fácil. (…) Ele mesmo falou para o Anjo: ‘Olha, eu não estou aguentando mais. Quero ir para minha casa’”. Em entrevista exclusiva dada a VEJA em junho, Wassef alegou ter dado guarida a Queiroz por razões humanitárias. O policial militar aposentado, que enfrenta um tratamento de câncer, precisava, segundo o advogado, de um lugar em São Paulo para se hospedar enquanto cuidava da saúde. Wassef também afirmou que nunca manteve contato direto com Queiroz e que ninguém da família Bolsonaro sabia desse seu gesto de solidariedade. Interlocutora de Márcia, Ana Flávia contradiz ao menos parte dessa versão. Num dos áudios, ela afirma: “Você sabe que, com o Anjo aqui, acaba todo mundo indo dormir tarde. Agora, o nosso amigo está conversando com o Anjo”. Em outro momento, reforça: “Ele tenta não transparecer, mas está estressado, sim. Ele falou para o Anjo que não aguenta mais isso, que está cansado e que ele quer ir embora. Eu também falei para o Anjo: ‘Olha, essa história de alugar casa aí, eu não vou atrás. Não vou. A não ser que você sente e dê o dinheiro’”.
“Eu sei que ele não está bem. Igual você falou: ele tenta mostrar que ele está bem e tudo. Mas a gente sabe que ele está preocupado. E não é para menos, né? Ele se distrai aqui, cozinhando, arrumando a casa, essas coisas. (…) Ele mesmo falou para o Anjo: ‘Olha, eu não estou aguentando mais. Quero ir para minha casa’”, responde Ana Flávia Rigamonti, advogada que acompanhava Queiroz em Atibaia
De repercussão política incontestável, a prisão de Queiroz e de Márcia acelerou o processo de moderação adotado pelo clã Bolsonaro. As explicações do policial militar aposentado sobre pontos da investigação do esquema de rachadinha podem ou não implicar a família do presidente em crimes. Já se sabe que Queiroz movimentou recursos em quantidade incompatível com sua remuneração mensal — segundo relatório do Coaf, 1,2 milhão de reais entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017. Já se sabe que ele recebeu parte dos salários dos servidores de Flávio Bolsonaro na Alerj e, no mesmo período, pagou em dinheiro vivo despesas pessoais do então deputado estadual, hoje senador. Já se sabe também que Queiroz e Márcia depositaram, por meio de cheques, cerca de 90 000 reais na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro. O presidente alegou que parte desses valores era o pagamento de um empréstimo que fez a Queiroz. Os advogados dos citados argumentam que há uma explicação para cada transação financeira realizada, que será apresentada no momento oportuno perante a Justiça. Já Márcia deixou clara num dos áudios sua insatisfação com a cruz que, segundo ela, apenas a sua família está sendo obrigada a carregar. “Eu estou vendo que todo mundo está vivendo a sua vida”, disse ela. “Agora, a gente não. Então, somos foragidos para viver fugindo? Não é possível isso, entendeu?” Márcia também não se conforma, como relatou a VEJA uma pessoa próxima a ela, com o fato de o padrão de vida de sua família, modesto, de classe média baixa, ser incompatível com a dinheirama que seu marido movimentou. Queiroz, nas palavras da própria mulher, não enriqueceu com os serviços que prestou.
Publicado em VEJA de 26 de agosto de 2020, edição nº 2701