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‘As marcas são eternas’, diz sobrevivente da tragédia da Boate Kiss

Na luta por justiça, Kelen Ferreira, 28 anos, conta como lida com as sequelas deixadas pelo caso

Por Nathalie Hanna Atualizado em 4 jun 2024, 13h07 - Publicado em 10 dez 2021, 18h30
Kelen Ferreira -
Kelen Ferreira – (Derli soares Jr./Espaço Art Foto e Vídeo/.)

Eu tinha 19 anos em 27 de janeiro de 2013 quando as chamas que consumiram a boate Kiss feriram meu corpo e me roubaram também a leveza da juventude. Havia combinado com uma turma de ir para lá. Chegamos por volta da meia-noite e meia e a fila dobrava a esquina. O lugar estava lotado e por isso ficamos perto do bar, uma área menos cheia. Como minhas três amigas tinham ido ao banheiro, a confusão começou e me vi sozinha no meio dela. A princípio, achei que fosse briga, mas aí uma multidão correu em desespero na direção da porta e, muito assustada, fiz o mesmo, sem imaginar que estava salvando minha vida. Até aquele ponto, não se avistava o fogo, e quis voltar para buscar minhas amigas. Foi nesse momento que um homem falou, sério: “Você não pode retornar”. Só quando, enfim, cheguei à porta compreendi que aquilo era um incêndio. Senti os meus braços queimarem. A sensação era de morte. De repente, me retiraram da boate e me puseram dentro do carro de um conhecido, que me levou ao hospital. Fui a primeira sobrevivente a escapar do massacre da boate Kiss.

Permaneci consciente até ser entubada naquela madrugada. Fiquei em coma e apenas acordaria quinze dias depois. O efeito das chamas em meu corpo foi avassalador: 18% estava severamente queimado, sobretudo os braços. Acordei sem minha perna direita, um pavor: os médicos tiveram de amputá-la por falta de circulação. Fiquei destruída. Ao todo, foram 78 dias internada. Saí do hospital, mas as sequelas me acompanham. Vou precisar usar prótese na perna pelo resto da vida. Faço até hoje tratamento com um pneumologista por causa da fumaça inalada. Se não mantiver a disciplina, corro o risco de precisar de um transplante pulmonar. Já passei por mais de dez cirurgias. Chorei por muito tempo, sem parar. Não conseguia dormir à noite. Me culpei por tudo: por ter ido, por ter sobrevivido e por não ter conseguido salvar minhas amigas.

O tempo passou sem que a tristeza nunca tenha me deixado. E assim segui minha vida. Escondi um pouco a dor, o luto, para poupar minha família, que sofria junto comigo. Na época, eu cursava terapia ocupacional. Não larguei, mas mudei de objetivo. Antes, pretendia trabalhar com saúde mental. Depois do incêndio, decidi me especializar em reabilitação física, especialmente para ajudar amputados e queimados. Meu propósito virou dar todo o apoio a pessoas que enfrentam o horror de uma mutilação. Quero retribuir de alguma maneira o que fizeram por mim. Estive do outro lado, então sei bem como é você perceber que perdeu uma parte de si. Doía-me olhar no espelho e ver os braços marcados pelas queimaduras. Só comecei a aceitar a amputação no ano passado. É um processo longo, doloroso. Revivo aquela maldita data todos os dias.

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Fiquei anos com a sensação de impunidade pesando sobre minha cabeça. Quase nove anos se passaram. Agora, com o julgamento finalmente em andamento, me vêm todos os sentimentos ao mesmo tempo. Estou confiante, apreensiva e ansiosa. O luto me bateu forte e, dois meses atrás, minha psiquiatra precisou aumentar a dose dos remédios diante de meu nervosismo. Torço para que nenhuma tragédia parecida se repita, que ninguém passe pelo sofrimento que é ver tantas vidas sugadas pelo fogo por irresponsabilidade, negligência e afronta à lei. O despreparo da boate para receber aquela multidão abreviou a trajetória de pessoas que só estavam lá para se divertir. Os réus são culpados e precisam responder por esse crime. Estou na linha de frente nessa batalha, que não é só por mim, mas pelas 242 vítimas e pelos 635 sobreviventes para sempre tatuados pela tragédia. A condenação me trará um pouco de paz. Só quero justiça.

Kelen Ferreira em depoimento dado a Nathalie Hanna

Publicado em VEJA de 15 de dezembro de 2021, edição nº 2768

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