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Artigo: Não conseguimos respirar

"George Floyd não está mais sozinho", escreve Jose Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares

Por José Vicente
Atualizado em 4 jun 2024, 15h41 - Publicado em 14 ago 2020, 06h00

Quando, em 2 de março de 1867, a Howard University inaugurou suas instalações em Washington D.C., no coração da República, e recebeu nos bancos das salas de aula dos cursos de teologia e medicina os primeiros negros livres da escravidão, após a Guerra Civil de 1865, além da justa euforia e do incontido entusiasmo, seguramente um sentimento de otimismo tomou conta de boa parte da população americana. Estava aberta uma das portas que conduziriam os negros ao gozo e ao usufruto dos propósitos narrados pelos pais fundadores da nação de que todos os homens foram criados iguais e de que são dotados pelo Criador dos direitos inalienáveis da vida, da liberdade e da busca de felicidade.

Nos mais de 150 anos de história, Howard e cerca de duas centenas de universidades negras públicas e privadas americanas produziram milhares de cérebros e talentos, conhecimento, tecnologia e inovação, e ajudaram a difundir para todo o planeta a criação, a inventividade, a habilidade e a competência do negro americano na academia, no cinema, na arte, na dança, na música, na medicina, na matemática, na política, no esporte e na cultura em geral. Produziram pérolas negras como Thurgood Marshall na Suprema Corte, Martin Luther King, Toni Morrison, prêmios Nobel da paz e da literatura. E todos juntos concretaram as pontes por onde atravessaram, entre tantos outros, os secretários de Estado Colin Powell e Condoleezza Rice, Guion Stewart Bluford, astronauta negro com quatro viagens ao espaço, o atleta Carl Lewis e, lógico, Oprah Winfrey, Spike Lee, Michael Jackson, Beyoncé, Michelle e Barack Obama.

Os negros fizeram tudo certo e fizeram a coisa certa. Robusteceram a fé, burilaram o intelecto e cultivaram e fortaleceram a crença na Justiça, como garantidora do tratamento justo e igualitário, independentemente de raça ou cor da pele. Mas os táxis de Washington muitas vezes não param quando um aluno negro da Howard acena e dificilmente aceitam corrida ou atendem chamadas para os bairros negros; o cliente branco dispensa a corrida quando o motorista de táxi é negro. Os negros, 13,4% dos americanos, são a maioria entre os desempregados, a maioria entre os miseráveis e a maioria dos presos no sistema carcerário.

Quando, em 2003, a Universidade Zumbi dos Palmares abriu as suas portas, no coração da cidade de São Paulo, para receber os primeiros jovens negros, no curso de administração de negócios, a população brasileira negra ficou em júbilo. Pela primeira vez na história do Brasil, uma universidade negra comunitária, criada por negros, colocava-se de pé para ampliar os caminhos da liberdade, fortalecer os propósitos da igualdade e do pertencimento, incluir, qualificar, aprimorar e empoderar social e intelectualmente os brilhantes, habilidosos, criativos e competitivos talentos negros, que desde sempre a história do país deixa pelo caminho.

A luta pioneira da Universidade Zumbi dos Palmares ajudou a salvar vidas e a construir as pontes pelas quais mais negros chegaram à mídia, à propaganda, às novelas, às revistas de glamour, às empresas, à política, aos espaços de prestígio, aos tribunais e até mesmo ao Supremo Tribunal Federal. Em 2019, com o livro Black Box (“Caixa preta”), que reúne as grandes realizações dos negros na história mundial, e com a campanha Machado de Assis Real, que resgata a negritude do maior escritor brasileiro, pela primeira vez uma universidade brasileira conquistou dois prêmios no Festival de Cannes (um Leão de Ouro para o primeiro projeto e um de bronze para o segundo) e tornou obrigatória, nos mais importantes ambientes literários do país e do exterior, a substituição da fotografia branca de Machado de Assis pela sua real imagem negra.

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Mas o jovem negro da Zumbi, tal qual os das universidades negras americanas, é parado pela polícia ainda na porta da universidade, esteja vestido com roupas simples do batente ou com um terno bacana e num carro bom, custeado por alguns gordos estágios.

Na nossa democracia racial brasileira, os negros da Zumbi e todos os demais 54% dos negros do país, num processo sistemático de limpeza étnica, são apagados da estética oficial miscigenada. São invisibilizados e excluídos da cena política, social, cultural e artística, apartados do ambiente corporativo público e privado.

No nosso estado de direito, os negros são chicoteados, amordaçados, seviciados e mortos nos interiores dos vistosos hipermercados. Nossos ambientes de artes ficam perturbados com a presença negra e os seguranças dos shoppings e das lojas de luxo não abandonam nem por um segundo o cliente negro. Na democracia brasileira, nossos salões de moda precisam que os negros se acorrentem do lado de fora para que possam se apresentar do lado de dentro, nas passarelas.

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No maior país negro das Américas, professores e cientistas negros inexistem nas grandes ou nas menores escolas e universidades públicas e privadas. No país de miscigenados e da democracia racial não existe um presidente negro nas 2 000 maiores empresas nacionais ou multinacionais.

No estado democrático de direito brasileiro, as forças policiais realizam limpeza étnica e genocídio contra os negros à luz do dia. O racismo estrutural do Estado e da elite política e econômica usa como método o modo automático da indiferença, a omissão, a informalidade e o silêncio.

Lá como cá, imperam a ambiguidade e o casuísmo de uma República construída sobre o pântano da escravidão, a desonestidade e a dissimulação de um pacto político que distorceu e subverteu os propósitos e objetivos da nação. Reinam também a vilania e a indiferença de uma Justiça que sufragou como legítimo um estado de apartheid racial, que envenenou a atmosfera com ódio e preconceito racial e transformou o racismo estrutural em arma política de grupos de interesses para a captura, a manutenção e o monopólio dos privilégios e oportunidades sociais.

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Lá como cá, o racismo estrutural e a discriminação racial, que mantêm negros e brancos separados e desiguais, se transformaram no joelho ostensivo que sufoca, asfixia e estrangula o pescoço de americanos e brasileiros, impedindo a todos de respirar livremente.

George Floyd não está mais sozinho. Junto com os milhões de jovens negros e brancos de todo o mundo, seus pulmões estão abarrotados de ar para gritar e exigir nas ruas a mudança e a transformação do nosso tempo. E, quando polícia e políticos se põem de joelhos para ouvir e se solidarizar com o povo, acende uma luz de esperança. Liberdade, igualdade, honestidade, confiança, segurança, verdade e fraternidade: esse é o ar que faltou a Floyd, esse é o ar que todos queremos, precisamos e exigimos para definitivamente respirar e viver livres e em paz.

Jose Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares

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Publicado em VEJA de 19 de agosto de 2020, edição nº 2700

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