Apagão em SP: falhas de gestão pública e debate raso sobre privatização
O cenário de crise no qual mergulhou a cidade abriu as portas para a exploração política oportunista
Era final de sexta-feira, no meio do feriado prolongado de Finados, quando uma chuva intensa, com rajadas de ventos de 104 quilômetros por hora, atingiu São Paulo e instaurou o caos. Apesar de acostumados a situações difíceis no seu cotidiano, os moradores da maior metrópole do país viveram a partir dali um pesadelo de proporções inéditas. A tempestade alagou ruas, apagou semáforos, derrubou um sem-número de árvores e deixou 2,1 milhões de endereços sem energia. Os prejuízos para as empresas foram gigantes: só no setor de hotéis, restaurantes e turismo, o dano foi estimado em 500 milhões de reais. A agonia foi longa. Na segunda, quando a capital paulista tentava retomar a vida normal, ainda havia 300 000 pontos sem luz. Na quarta, cinco dias depois do temporal, cerca de 10 000 clientes permaneciam às escuras.
O tormento climático, algo que deverá ser cada vez mais comum nos próximos anos, expôs um preocupante problema de gestão pública, em vários níveis. Um deles em uma atividade básica, que é a zeladoria da cidade: a queda em massa de árvores, causando prejuízos materiais, ferindo pessoas e atingindo a rede elétrica, é um transtorno que se repete há décadas. Como se viu, o atual prefeito, Ricardo Nunes (MDB), também foi tragado pelo problema e acabou atingido pela saraivada de críticas. A situação gerou reprimendas até do aliado, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos). Segundo disse ele, a “questão arbórea” era “uma das soluções mais baratas e efetivas”.
Evidentemente, o cenário de crise no qual mergulhou a cidade abriu as portas para a exploração política oportunista. O deputado Guilherme Boulos (PSOL), principal rival de Nunes no pleito municipal do próximo ano, saiu disparando contra o prefeito sem mencionar, no entanto, que cabe a uma agência federal — a Aneel, subordinada ao governo de seu aliado e cabo eleitoral, o presidente Lula — fiscalizar a concessão e a qualidade dos serviços prestados pela Enel, que desde 2018 opera o fornecimento de energia. E os sinais de que tudo ia mal não eram poucos: no relatório de 2022, a concessionária pontuou 49,28 em uma escala de satisfação dos clientes que vai de 0 a 100, ocupando a 45ª posição entre 53 concessionárias. No item confiança no fornecimento, foi a quinta pior. Questionada pela reportagem de VEJA, a Aneel não respondeu que providências mais drásticas adotou diante desse quadro tenebroso. É verdade que entre 2018 e 2023 a Enel foi multada pela agência reguladora em 157,2 milhões de reais por falhas no serviço. Desse montante, no entanto, pagou efetivamente apenas 34,3 milhões de reais.
A situação caótica provocada pelo apagão em São Paulo ainda precipitou uma discussão rasa e enviesada sobre a privatização de serviços públicos. As críticas ao processo de desestatização vieram de todos os lados, inclusive de onde pouco se esperava, casos de pessoas ligadas ao ex-presidente Jair Bolsonaro — como o ex-secretário Fabio Wajngarten — e do MBL, movimento que, em tese, defende ideias liberais, mas que parece mais empenhado em alavancar a candidatura de seu fundador, o deputado Kim Kataguiri (União Brasil), outro que tentará em 2024 a prefeitura de São Paulo.
O histórico das responsabilidades sobre a distribuição da energia em São Paulo é cheio de idas e vindas. Na origem, o serviço estava aos cuidados da iniciativa privada. A infraestrutura foi implantada em 1899 pela canadense São Paulo Railway e estatizada em 1979, quando a empresa foi adquirida pela Eletrobras. Dois anos depois, o controle passou ao governo de São Paulo, que criou a Eletropaulo. Em 1995, Mario Covas (PSDB) dividiu a empresa em quatro menores. Em 1999, a Eletropaulo Metropolitana, a fatia mais rentável do pacote, acabou sendo vendida a um consórcio formado por empresas americanas, francesas e a brasileira CSN. Em 2001, ela passou a ser controlada só pela americana AES Corporation e mudou de nome para AES Eletropaulo. Em 2018, enfim, a Enel Brasil, subsidiária da multinacional com sede na Itália, comprou 73% das ações. Além de São Paulo, a Enel atua no Rio e no Ceará. Em 2022, a empresa deixou de prestar serviço em Goiás. “Eles agiam como se fossem donos da concessão, só devendo satisfações a Roma”, ironiza Ronaldo Caiado, governador desse estado.
Ao contrário das privatizações bem-sucedidas realizadas na telefonia e em outras áreas, o processo de desestatização do setor elétrico teve problemas de origem que repercutem até hoje. Quando as empresas privadas começaram a entrar no negócio, em meados dos anos 90, a rede de distribuição já se encontrava sucateada. Os contratos assinados para as concessões não garantiram de forma suficiente os investimentos para a recuperação do sistema e a falta de concorrência só piorou a situação. “A qualidade do serviço piorou e o preço da conta de luz aumentou”, resume Ildo Sauer, professor do Instituto de Energia da USP.
Se não bastasse, mesmo considerando o fiasco generalizado do histórico de atuação das agências reguladoras, uma boa ideia que acabou sendo completamente desvirtuada, virando um dos maiores cabides de nomeações políticas dos últimos tempos, a Aneel conseguiu se destacar negativamente pela mais completa inoperância. Mesmo as agências estaduais têm poder limitado, já que a competência para fiscalizar e punir é da União — em alguns casos, os órgãos locais apelam à Defesa do Consumidor para aplicar multas e cobrar indenizações, mas a concessionária pode contestar na Aneel.
Outro problema brasileiro é a frouxidão dos parâmetros impostos pela agência reguladora. Desde 2019, uma resolução permitiu elevar o limite tolerável para interrupções no fornecimento— na prática, uma residência pode ficar até 84 horas por ano no escuro, contanto que o tempo interrompido não some mais de 7 horas por mês. “As distribuidoras são cada vez menos pressionadas a prestar um serviço de qualidade”, lamenta Carlos Augusto Kirchner, consultor da Federação Nacional dos Engenheiros para assuntos regulatórios.
O recente blecaute em São Paulo é apenas o mais novo capítulo de um longo histórico de crises recorrentes geradas pelos problemas crônicos do sistema elétrico. O mais grave se deu nos tempos de Fernando Henrique Cardoso, com o apagão na capacidade de geração de energia. O estrago político foi enorme e teve influência nas eleições presidenciais de 2002, quando José Serra, o candidato escolhido pelos tucanos para tentar suceder a FHC, perdeu a disputa para Lula. Em 2013, foi a vez de Dilma Rousseff sofrer as consequências de um gesto desastrado e demagógico: o anúncio da redução de tarifa em 16% no final de 2012. Após queda em 2013, a conta para o consumidor disparou nos anos seguintes. O “tarifaço” ajudou a corroer a popularidade de Dilma.
Embora a concessão à iniciativa privada de serviços operados pelo estado tenha se revelado quase sempre um grande acerto, a defesa da privatização é vista com receio pelos políticos do país, que temem perder votos. Um exemplo foi o do hoje vice-presidente Geraldo Alckmin. Em 2006, quando disputava a Presidência pelo PSDB, ele passou pelo constrangimento de usar boné e jaqueta com logomarcas de estatais para reforçar que não iria vendê-las caso fosse eleito.
O episódio do apagão em São Paulo já provoca estilhaços em Tarcísio de Freitas, que será obrigado a enfrentar um clima ainda mais hostil em seu plano de desestatizar a Sabesp, maior companhia de saneamento básico do país. Enquanto isso, o governo Lula segue acelerando na direção contrária, descartando qualquer privatização (Petrobras, bancos oficiais, Porto de Santos, Correios, entre outras) — já reverteu ao menos uma (por decreto, anulou a extinção da fábrica de chips Ceitec) e sonha em fazer o mesmo com a Eletrobras, a principal empresa do nosso sistema elétrico.
A maneira confusa como a privatização entrou no debate político do maior colégio eleitoral do país é algo a lamentar porque ajuda a desperdiçar mais uma oportunidade de aperfeiçoar esse modelo. No caso específico do setor elétrico, há a necessidade de um ajuste mais profundo. “O governo precisa reorganizar o sistema, deixando no mercado apenas as concessionárias mais eficientes e criando linhas especiais de crédito para elas, via BNDES, para a recuperação da infraestrutura”, afirma Ronaldo Caiado. A sugestão do governador goiano toca em alguns pontos essenciais: em qualquer política de privatização, a entrega de concessões ao setor privado não significa que o poder público sairá de cena. Pelo contrário. Nesse cenário, a atuação do governo passa a ser ainda mais fundamental, na gestão dos contratos, na depuração dos participantes do mercado e na fiscalização para garantir a entrega de serviços com qualidade à população a um preço justo. Infelizmente, como ficou claro no caos enfrentado pelos paulistanos, o que há no setor elétrico é um apagão nesse papel regulador do poder público. O país precisa de menos escuridão e mais luz nesse debate.
Posição da Enel
Em nota enviada a VEJA, a Enel Brasil informou “que a decisão de sair de Goiás foi resultado, na ocasião, da estratégia do grupo de buscar um equilíbrio de portifólio entre geração e distribuição nos países em que atua”.
Publicado em VEJA de 10 de novembro de 2023, edição nº 2867