A nova indústria da comida
O setor de alimentos não foi dos primeiros a embarcar na revolução que os dados e a tecnologia estão provocando, mas o processo está sendo acelerado
Quem vai conhecer as linhas de produção de chocolate da Nestlé em Caçapava, no interior paulista, tem uma boa ideia das tecnologias mais avançadas que uma fábrica pode reunir. A maioria dos operários porta tablets nos quais acompanha em tempo real as informações sobre o desempenho das máquinas. Alguns deles usam óculos de realidade virtual para interagir em sessões de treinamento com mentores ou outros profissionais que podem estar a milhares de quilômetros de distância em outra das centenas de fábricas do grupo suíço pelo mundo. Veículos autônomos, sem operadores, transportam produtos de um canto para outro da fábrica. Isso sem falar no que não dá para enxergar: a unidade conta desde o ano passado com uma rede própria de 5G para acelerar a velocidade de transmissão de dados que toda a parafernália tecnológica troca constantemente, na maioria das vezes sem intervenção humana.
“A unidade de Caçapava é a fábrica mais automatizada e conectada da Nestlé na América Latina e compõe um grupo de elite entre as mais eficientes da companhia no mundo”, diz Gustavo Moura, gerente do Programa de Transformação Digital para Operações da Nestlé no Brasil. Nela está sendo investido 1,2 bilhão de reais num programa que começou no ano passado e vai até 2026. Parte dos recursos é destinada a aplicar em escala industrial as inovações desenvolvidas em seu Centro de Inovação e Tecnologia instalado no Parque Tecnológico de São José dos Campos, também no interior paulista. Uma vez experimentadas em Caçapava, as inovações passam a ser aplicadas nas outras dezesseis fábricas da Nestlé no Brasil.
Hoje, 70% das linhas de produção da empresa no país já utilizam os conceitos da chamada Indústria 4.0 — uma integração de diferentes tecnologias, como inteligência artificial, robótica, internet das coisas e computação em nuvem. Seu objetivo é digitalizar o máximo possível a operação industrial, melhorar processos e a qualidade dos produtos e aumentar a produtividade. Nada disso é capricho. A montanha de dados coletados pelos sensores instalados em cada equipamento ajuda a antever problemas e evitar que eles aconteçam, aumentando a produtividade. “O uso dessas tecnologias proporciona ganhos de até 10% na eficiência das linhas de produção”, afirma Moura.
Em resumo, na Indústria 4.0, os dados são tão importantes quanto as engrenagens. O conceito surgiu há pouco mais de dez anos para descrever um conjunto de transformações que passou a ser chamado de quarta revolução industrial, impulsionada pelo desenvolvimento de tecnologias como inteligência artificial, blockchain, big data e pela crescente digitalização de máquinas e equipamentos — assim como o vapor, a eletricidade e os primeiros sistemas de automação moveram as três fases anteriores.
Como era de esperar, os setores industriais mais intensivos em tecnologia — como os de telecomunicações, eletroeletrônicos e automotivo — foram os primeiros a embarcar na nova revolução. Mas, de uns anos para cá, a indústria de alimentos vem sendo pressionada a seguir pelo mesmo caminho por uma série de fatores emergentes. Primeiro, houve o desarranjo provocado pela pandemia de Covid-19 nas cadeias de produção, o que é fatal para uma atividade cujos produtos são perecíveis e de validade limitada. Depois, veio a disparada da inflação mundo afora, pressionando ainda mais uma indústria cujas margens já são naturalmente apertadas entre os fornecedores dos insumos e as grandes redes de varejo com elevado poder de barganha. Para completar, veio a guerra na Ucrânia e um novo golpe em mercados de alimentos básicos como trigo e milho.
Os desafios que ainda terão de ser enfrentados não são pequenos. A produção de alimentos sofre a pressão de encontrar um caminho para reduzir o impacto ambiental sem aumentar o preço da comida nem perder produtividade. Para lidar com um cenário tão complexo, uma revolução pode até ser pouco. “A busca por aumentar a eficiência operacional, reduzir custos e melhorar as margens é frequentemente o primeiro passo na adoção de tecnologias de digitalização e da Indústria 4.0 no setor de alimentos porque aumenta a produtividade das empresas”, diz Marcos Vinícius de Souza, diretor-executivo do C4IR Brasil, uma parceria público-privada que une o Fórum Econômico Mundial, o governo federal, o governo paulista e a iniciativa privada (há outros dezoito centros como esse espalhados pelo mundo). “Mas há grandes oportunidades de ganhos quando essas tecnologias começam a ser integradas na cadeia de valor das empresas, ou seja, da porta para fora.” O C4IR (sigla em inglês para Centro para a Quarta Revolução Industrial) busca fomentar a criação de um ambiente favorável à adoção de tecnologias emergentes.
Por enquanto, ganhar eficiência é o principal motivador dos investimentos nas tecnologias da Indústria 4.0. Segundo uma pesquisa feita no ano passado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), mais de dois terços das empresas de alimentos veem a redução de custos e o aumento da produtividade como os principais benefícios da digitalização das suas operações.
O problema: a indústria de alimentos no Brasil ainda está relativamente atrasada. De acordo com os dados da CNI, 31% dos executivos do setor entrevistados afirmaram que suas empresas não usam nenhuma ferramenta relacionada à Indústria 4.0 — outros 13% disseram não saber responder à pergunta. A soma de 44% é o 21º pior resultado entre 28 setores.
As empresas que embarcaram na nova onda, porém, podem dar testemunho de como essa revolução altera o panorama desde o chão de fábrica. Veja, por exemplo, a rotina do auxiliar de produção Fabrício Ponciano, de 20 anos. Ele começa seu dia na unidade da Cervejaria Ambev Equatorial, em São Luís, no Maranhão, limpando e lubrificando três impressoras 3D, cada uma delas aproximadamente do tamanho de um forno de micro-ondas, para entrar em operação. “Tenho o máximo de cuidado com essas máquinas, que são tão importantes aqui como qualquer outro equipamento da linha de produção”, diz Ponciano.
Não é exagero. Desde 2019, essas máquinas são usadas para imprimir peças sobressalentes para consertar equipamentos quebrados, diminuindo custos e, principalmente, acelerando a manutenção. Existem peças de reposição que precisam ser encomendadas no exterior e levam até 120 dias para chegar, passando por todos os trâmites burocráticos da alfândega e custando às vezes até 8 000 ou 10 000 reais — para não falar do prejuízo de ter uma máquina fora de operação por longos períodos. “Agora conseguimos imprimir aqui mesmo na fábrica peças semelhantes em cerca de quatro horas e por uma fração do preço das originais”, afirma Ponciano.
Pelo menos no caso brasileiro, a adesão de empresas mais tradicionais à nova revolução industrial vem sendo facilitada por uma geração de startups. Muitas delas fazem parte de um polo que passou a se desenvolver no setor de tecnologia de Santa Catarina há pouco mais de cinco anos — nem tanto em polos industriais tradicionais como Joinville ou Blumenau, mas no emergente ecossistema de inovação em cidades como Florianópolis e seus arredores. As impressoras 3D usadas pela fabricante de bebidas Ambev, por exemplo, e o treinamento para utilizá-las são fornecidos pela Wishbox, empresa do Balneário Camboriú que faturou 6 milhões de reais em 2022, segundo o sócio Tiago Marin.
Essas empresas mais jovens e inovadoras podem ter um papel importante: auxiliar as companhias tradicionais a abraçar a revolução e não correr o risco de ficar para trás. “A boa notícia é que existem ferramentas da Indústria 4.0 que são relativamente baratas de ser adotadas”, diz Túlio Duarte, diretor da vertical de manufatura da Associação Catarinense de Tecnologia (Acate), um grupo que reúne 84 empresas, das quais pelo menos sessenta fornecem algum produto ou serviço relacionado à Indústria 4.0. Duarte é sócio da HarboR, que, entre outros produtos, desenvolveu um sistema em que sensores coletam dados das linhas de produção que depois podem ser lidos e analisados pela empresa para identificar gargalos e melhorar a produtividade. Com ele, cada funcionário responsável por um equipamento pode acompanhar em tempo real tudo o que está acontecendo por meio de tablets. Uma das vantagens do sistema é acelerar a troca de turnos sem perder as informações do que está acontecendo na fábrica. Seis linhas de produção podem ser monitoradas por um custo de instalação próximo de 1 400 reais.
Um dos clientes da HarboR é a Docile, fabricante de doces com unidades industriais em Lajeado, no Rio Grande do Sul, e em Vitória de Santo Antão, na Zona da Mata pernambucana. A empresa faturou 570 milhões de reais em 2022, dos quais cerca de 30% foram provenientes de exportações. A Docile passou a adotar o sistema de monitoramento na fábrica de Pernambuco em 2018. “Conseguimos aumentar a produtividade em 10%”, diz Eduardo Cima, diretor industrial da companhia.
O uso dessas ferramentas tecnológicas da porta para dentro das fábricas tem sido o mais comum nas indústrias brasileiras de alimentos. Há muito o que fazer, porém, da porta para fora. Um exemplo é o da rastreabilidade digital, que envolve o uso de tecnologias como sensores, RFID (identificação por radiofrequência), códigos QR, blockchain e outros sistemas de informação para monitorar e rastrear produtos alimentícios em todas as etapas da cadeia de suprimentos. “Isso permite que as empresas identifiquem rapidamente a origem de um produto, o histórico de produção, as condições de armazenamento e transporte, por exemplo”, diz Marcos Vinícius de Souza, do C4IR. A coleta e a análise de dados também permitem a produção de comida com ingredientes personalizados a custos acessíveis para adaptação ao gosto ou às restrições alimentares de cada consumidor.
Na fronteira do desenvolvimento, está o uso das ferramentas de análises de dados para a criação de produtos inovadores, como a proteína cultivada em laboratório. Profissionais com doutorado e pós-doutorado em ciências de dados estão entre os perfis procurados para compor o quadro de 25 pesquisadores que vão trabalhar num centro de inovação em biotecnologia voltado para pesquisa e desenvolvimento de proteínas alternativas que começou a ser construído pelo grupo JBS em Florianópolis — um projeto de 60 milhões de dólares cuja primeira fase deve ficar pronta no fim de 2024. “Sem as ferramentas da Indústria 4.0, seria muito difícil que essas pesquisas avançassem”, diz a engenheira química Fernanda Berti, vice-presidente do JBS Biotech Innovation Center.
De fato, é necessário ter à mão ferramentas poderosas de análise e processamento de dados para entender como uma célula bovina funciona a ponto de conseguir reproduzi-la em laboratório — principalmente se isso tiver de ser feito a um custo relativamente baixo e em larga escala para, no fim de todo o processo, chegar ao consumidor a um preço acessível. As obras do centro de pesquisa da JBS começaram em setembro no Sapiens Parque, um centro de inovação situado no norte da Ilha de Santa Catarina, numa região que até recentemente era mais conhecida por atrair turistas argentinos para suas praias do que pela vocação tecnológica. Parte dos pesquisadores, no entanto, já foi contratada e está trabalhando em instalações do próprio Sapiens Parque.
Não é a única iniciativa da JBS na área. Em 2017, a empresa comprou 51% da espanhola Biotech Foods, que está investindo 41 milhões de dólares na construção de uma primeira fábrica comercial de proteína cultivada em San Sebastián, no País Basco espanhol — a previsão é de que a unidade entre em operação no ano que vem. De certa forma, são pernas diferentes que estão correndo atrás da tecnologia que irá se mostrar mais adequada comercialmente numa indústria ainda muito nova. “Não é nosso objetivo ter muito contato com a Biotech Foods”, diz Fernanda Berti. “Queremos concentrar aqui boa parte das pesquisas da JBS em proteína de laboratório e desenvolver uma tecnologia 100% brasileira.”