Sabe aqueles filmes que você já deveria ter visto, mas nunca viu? E os livros que deveria ter lido, mas nunca leu? Com ironia, certo intelectual costumava brincar que lia 100 livros por mês, quando, na verdade, lia a orelha de uns quarenta, a sinopse de uns trinta, o início de uns 27 e, então, só lia mesmo três livros completos. A meu ver, a anedota ilustra algo bem verdadeiro: por mais livros que você leia e filmes que você veja, é impossível conhecer tudo! É impossível voltar aos clássicos e ao mesmo tempo acompanhar o que é publicado pelas editoras, distribuído nos cinemas e nos canais de streaming. Aliás, plataformas como Netflix, Amazon, HBO e Globoplay só aumentaram o desafio, lançando diariamente séries e longas de vários países.
De todo modo, é curioso ainda hoje “pegar mal” não conhecer algumas obras. Logo que comecei a escrever, certo escritor de renome me perguntou se eu já havia lido Ulisses, de James Joyce. Respondi (honestamente) que não. Daí, o sujeito-escritor disse que era impossível alguém ser bom escritor sem ter lido Ulisses. Na minha ânsia juvenil, tratei de comprar um exemplar no dia seguinte, mas morri na praia; quer dizer, morri logo nas páginas iniciais. Sei da importância de Ulisses, mas achei o livro um porre.
“Ainda ‘pega mal’ não conhecer algumas obras. Sei da importância de Ulisses, mas achei o livro um porre”
Na literatura, há bem mais exemplos de livros “obrigatórios” que muita gente finge que leu, como Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, A Montanha Mágica, de Thomas Mann, e O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar. No cinema, há desde clássicos, como …E o Vento Levou, Casablanca e O Mágico de Oz, até outros mais recentes, como Moulin Rouge, Thelma e Louise, Paris, Texas e Kramer x Kramer. Na arte, não existe obrigação. Cada um lê e vê o que bem quer. Mas não há dúvida de que este momento em que o mercado está em suspenso, sem tantos lançamentos, é ideal para recuperar o tempo perdido. Não à toa, as editoras têm visto seu catálogo de clássicos com mais saída que o de livros pop que costumavam “bombar” entre os mais vendidos. É o caso de romances de Jane Austen, Bram Stoker, George Orwell, Gabriel García Márquez, Edgar Allan Poe, Franz Kafka e Lev Tolstói.
No cinema, meu débito era grande. Por isso decidi criar metas e completar a obra de alguns diretores que sempre admirei, como Brian De Palma, Roman Polanski e Martin Scorsese (só agora assisti ao maravilhoso O Rei da Comédia, referência evidente de Coringa). “Zerei” também Alfred Hitchcock, cuja obra sempre influenciou meus livros. Desde adolescente, sou apaixonado por Psicose, Festim Diabólico e Pacto Sinistro, mas foi só na quarentena que parei para ver Os Pássaros, clássico no qual uma pequena cidade litorânea é atacada por aves sinistras. É um bom filme, mas minhas surpresas recentes do mestre foram A Sombra de uma Dúvida, que narra a misteriosa volta do tio Charlie à família, e Interlúdio, um noir conspiratório que traz Ingrid Bergman e Cary Grant para o Rio de Janeiro, mostrando a orla de Copacabana e conversas na Cinelândia. E você? Que livros tirou da prateleira para ler na quarentena? Que filmes e séries vai aproveitar para ver enquanto está em casa?
Publicado em VEJA de 6 de maio de 2020, edição nº 2685