Papéis invertidos: contra Trump, esquerda chega a amar FBI
Execrada desde o longo reinado de J. Edgar Hoover, a polícia federal americana é a grande esperança dos democratas de levar presidente ao impeachment
“No momento em que o FBI começar a fazer recomendações sobre o que deve ser feito com suas informações, transforma-se numa Gestapo.”
A frase famosa foi dita pelo homem que, sob a ótica da esquerda americana, chegou muito perto de criar uma polícia política todo-poderosa e fora dos controles democráticos.
Em quase quatro décadas, de 1935 a 1972, J. Edgar Hoover espionou todo mundo, de Marilyn Monroe a Albert Einsten, dos Kennedy a John Lennon. Virou um vilão da esquerda.
Curiosamente, sua ambígua vida no armário, na companhia constante de Clyde Tolson, tornou-se alvo de ataques – imaginem o escândalo que seria criticar alguém de esquerda por parecer ou ser homossexual.
O tsunami Trump conseguiu inverter tudo. Por causa das investigações sobre um possível elo entre o presidente ou seu entorno com o serviço de Inteligência russo, conduzidas pelo ex-diretor do FBI Robert Mueller, e das contrainvestigações sobre abuso de poder e espionagem ilegítima, os papéis foram trocados.
O Partido Democrata, a maioria esmagadora da imprensa e simpatizantes de ideias mais à esquerda tornaram-se defensores apaixonados do FBI. Muitos acreditam que Mueller vai descobrir, se não já descobriu, alguma ilegalidade que permita abrir caminho, em especial se a oposição conseguir maioria no Congresso, a um processo de impeachment de Trump.
O Partido Republicano e conservadores em geral, embora não todos, tomaram o caminho oposto.
Criticam o FBI – cujos integrantes sempre foram majoritariamente de direita, muitos em certa época da religião mórmon por seus princípios de inabalável honestidade – como se fosse se não a Gestapo, uma nova Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental que tudo ouvia e em em tudo se infiltrava.
Uma das manifestações desse conforto é o memorando feito por deputados republicanos indicando uso indevido do tribunal secreto que autoriza escuta e monitoramento de cidadãos americanos contra os quais exista uma suspeita razoável de estar a serviço de agentes estrangeiros.
Integrantes da Comissão de Inteligência conseguiram, em virtude do privilégio de supervisão sobre órgãos do formidável aparato de segurança, informações sigilosas apresentadas pelo FBI para grampear um personagem menor da campanha de Trump, Carter Page.
Os argumentos foram baseados – e aí está o motivo da indignação dos republicanos – no infame dossiê feito por um ex-espião inglês, a serviço de uma empresa de investigações contratada pela campanha de Hillary Clinton.
Grampear um é grampear todos, como sabe perfeitamente que vive nessa área, escutando ou sendo escutado.
Vários integrantes do alto escalão do governo de Barack Obama pediram acesso às informações sigilosas e plantaram tudo o que podiam na imprensa. Daí a suspeita de que tudo tenha sido uma armação para obstruir Trump, uma intervenção criminosa sem precedentes na democracia americana.
O caso todo é espetacular porque existem bons argumentos no lado contrário. Ou seja, Trump e seu entorno podem ter sido infiltrados pelos russos, tivessem ou não consciência disso.
Carter Page é uma figura menor, mas conhecida. Operando na área de recursos energéticos, morou em Moscou e chegou a ser sondado como informante da inteligência russa antes mesmo de entrar – e rapidamente sair – na equipe eleitoral de Trump.
Segundo o dossiê de Steele, ele se reuniu em segredo, durante a campanha, com Igor Sechin, presidente da Rosneft, a Petrobras russa (comparação feita em mais de um sentido), e Igor Divyekin. Na pauta, negócios milionários, troca de favores e outros enroscos envolvendo o fim das sanções contra a Rússia por suas pesadas intervenções na Ucrânia.
Outros contatos com emissários russos de pessoas próximas a Trump, incluindo seu filho mais velho, seu genro e o ex-assessor de segurança nacional Michael Flynn, criaram suspeitas que precisam ser respondidas.
Criticar ou adular, segundo as linhas partidárias, um promotor especial encarregado de investigar assuntos que podem derrubar um presidente não é nenhuma novidade.
Na época em que Bill Clinton chegou a sofrer um impeachment, embora o processo final de afastamento não tenha passado no Senado, o promotor Ken Starr era uma verdadeira besta-fera para os democratas.
É claro que mentir sobre estripulias sexuais com uma estagiária é muito diferente de se aliar ao mais clássico inimigo do país para ganhar uma eleição.
Um Trump vilão que trai o país para ser presidente ou um Trump perseguido pelo aparato de segurança que consegue, mesmo assim, ser presidente? As opções são de tirar o fôlego.
Só para ter um pouco de perspectiva histórica, já houve acontecimentos dramáticos envolvendo presidentes e o FBI em escala monumental.
J. Edgar Hoover usava seus arquivos secretos para intimidar, mas também proteger políticos. A mais conhecida, e complicada, relação que teve foi com os irmãos Kennedy.
Através de sua rede de escutas, descobriu o caso do sexualmente insaciável John Kennedy com Judith Campbell Exner. Ela também dividia a cama com chefão mafioso Sam Giancana, o que deu motivo para incontáveis teorias conspiracionistas.
Mas nada se compara, nessa área, ao triângulo envolvendo os irmãos Kennedy e Marilyn Monroe. Belos e tragicamente mortos, os Kennedy por balas assassinas, a atriz por suicídio, os três até hoje açulam as imaginações dadas ao conspiracionismo.
Segundo um certo consenso, John Kennedy “passou” Marilyn para o irmão, uma prática comum no mundo em que viviam. Depois que ela se suicidou, em 5 de agosto de1962, Hoover mandou um memorando a Bob Kennedy dizendo que iria sair um livro no qual se “indicava” que ele e Marilyn eram “íntimos”.
Outros elementos do livro: ela achava que iriam se casar, ficou revoltada depois que descobriu que não, ameaçou revelar tudo e acabou vítima da “eliminação científica de inimigos” tal como praticada pela “conspiração comunista”.
O fato de que muita gente acredite até hoje nessas teorias indica o poder que têm sobre a imaginação humana, sempre tão disposta a desconfiar das versões oficiais, o que é saudável, mas também a unir pontos especulativos, por mais absurdos que sejam.
Trump ainda tem que aparecer com uma história melhor do que a dos irmãos Kennedy e Marilyn Monroe. Nem se detonar em pouco mais de um ano dois diretores do FBI, James Comey, demitido, e Christopher Wray, supostamente demissionário, chegará perto.
Como o caso ainda está longe de ser elucidado, pode vir a se tornar um evento de magnitude histórica.
Um traidor da pátria escorraçado do poder ou o mais improvável dos heróis, o homem de pele laranja que expõe a perversa malícia de seu santificado antecessor?