No meio do tsunami, ou até sem ter chegado ao topo dele, dá para pensar no que vai acontecer quando a onda refluir? Não só pensar como repensar. Os dois cavaleiros do apocalipse soltos pelo mundo são a pestilência e a fome. A distância entre eles não é grande, e a velocidade dos acontecimentos não permite ficar olhando para trás. Lembram-se de quando a Dior começou a produzir álcool em gel? Pois é, foi em meados de março, quase uma era geológica atrás. Quem acrescentar que ainda não conseguiu absorver o fato de que o desinfetante de mãos vale mais que o perfume estará perdendo não só a corrida como a capacidade de adaptação.
Da mesma maneira, valentes guerreiros da austeridade fiscal rodam a maquininha sem culpa. “Boris precisa adotar o socialismo imediatamente para salvar a economia de mercado”, escreveu, bombasticamente, o comentarista econômico inglês Ambrose Evans-Pritchard. Só pelo nome já dá para perceber que ele é da alta elite do liberalismo clássico, que abomina o surrealismo fiscal e chama de socialismo benefícios sociais em massa. “Não há limites para o endividamento”, garantiu. Por quê? “Não existe alternativa.” Cheques na conta dos trabalhadores trancafiados em casa, aluguéis bancados pelo governo, empréstimos a perder de vista para as empresas, liquidez na veia, sem parar. O momento é de usar o arsenal nuclear. Dois governos que supostamente são conservadores, o americano e o inglês, tornaram-se gastadores compulsivos. O que parecia uma bomba — pacote de 1 trilhão de dólares nos Estados Unidos! — vira um traque rapidamente. Tudo o que George Bush filho e Barack Obama fizeram para evitar a falência mundial na crise de 2008 e depois reanimar a economia, Donald Trump vai fazer dez vezes mais. Vinte vezes. Cem. O que for necessário. Se ele nunca foi de esquentar com a dívida de 23 trilhões de dólares quando tudo ia bem, imaginem agora, quando vê desabar todo o castelo de economia aquecida que incentivou a criar.
Tudo o que Bush e Obama fizeram para evitar a falência mundial em 2008, Trump fará dez vezes mais
No atual universo bizarro onde tudo está invertido e até o mais natural impulso humano em horas de perigo — juntar a família toda debaixo do mesmo teto — tem de ser subdividido em unidades nucleares, as posições ideológicas se entrecruzam. Trump falou em “algumas semanas” para começar a retomar as atividades econômicas, recebendo a habitual chuva de pancadas, mas foi Andrew Cuomo, o superdemocrata governador de Nova York, quem disse as seguintes palavras: “Não podemos parar a economia indefinidamente. Então temos de pensar se todo mundo continua sem trabalhar. Os mais jovens devem voltar mais cedo? Podemos fazer exames para ver quem já teve o vírus, está imunizado e pode retornar ao trabalho?”. São perguntas impensáveis em tempos normais. Até a próxima semana, poderão já estar superadas.
Milton, um dos gênios ingleses que ganhou o direito de ser chamado só pelo sobrenome, inventou uma palavra para qualificar em Paraíso Perdido, em 1667, um congresso literalmente infernal: pandemonium. Misturou grego — pan, significando todos, e demon — mais a declinação plural em latim. Todo mundo está redescobrindo o significado original de pandemônio.
Publicado em VEJA de 1 de abril de 2020, edição nº 2680