O Futuro é Asiático. Este é o título bem direto de um livro de Parag Khanna, americano de origem indiana. Motivo número 1: “Demograficamente, o futuro já é asiático. Mais de 50% da população mundial vive na Ásia”. Número 2: “De 35% a 40% da economia mundial está na esfera asiática”. Terceiro, não mencionado pelo autor, mas provocante: a China, principal motor e a locomotiva dessas transformações, almeja oferecer aos vizinhos, próximos ou mais distantes, um modelo de desenvolvimento e de sistema político. Uma espécie de “capitalismo controlado pelo partido” em que a estabilidade compensa a ausência de democracia.
Desde que a crise do coronavírus escapou da China e contaminou o planeta, os órgãos de propaganda do regime e seus apaniguados no mundo acadêmico ocidental aceleraram a mensagem. O principal argumento é o que transparece superficialmente no mapa-múndi. De um lado, o país onde tudo começou conseguiu conter a epidemia na faixa dos 4 500 mortos. Os tropeços iniciais foram corrigidos, a economia sofreu sem sair do eixo e o grande líder Xi Jinping comandou a importante vitória estratégica — palavras dele numa reunião de cúpula do Partido Comunista — contra o vírus. Do outro lado, o país cujo modelo político propiciou o florescimento da mais poderosa potência da história parece mal das pernas. A Covid-19 matou mais de 210 000 americanos, Trump conseguiu provocar mais desunião ainda mesmo acometido pela doença viral, o caos social com origem racial proporcionou cenas inacreditáveis e metade do país odeia a outra metade. Acima de tudo, os EUA parecem ter perdido a narrativa que assegurou sua hegemonia econômica, científica, militar e artística, a do país iluminado como um farol no alto de um morro, irradiando um sistema de liberdade e progresso como jamais houvera, ancorado numa Constituição criada por gênios e à prova de idiotas, pacote fechado e bem-sucedido.
“É melhor fritar hambúrgueres na América do que desfrutar a estabilidade pseudoconfuciana”
É claro que esse quadro foi exagerado, para o bem e para o mal, com fins de salientar a argumentação. E, acima de tudo, é para os EUA que os pobres, oprimidos e também remediados de todo o mundo sonham emigrar, nem que seja clandestinamente. É melhor fritar hambúrgueres na América do que desfrutar a estabilidade pseudoconfuciana promovida pelo partido único. Excetuando-se as elites globais que circulam em todas as esferas e nelas reproduzem seu modo privilegiado de vida, a China no máximo é um destino sonhado pelos norte-coreanos, submetidos a uma versão mais catastrófica e alucinada do que foi o maoismo.
O modelo chinês é impensável nas democracias avançadas. Faz mais sentido em países asiáticos sem currículo democrático ou até na África, onde a China investe pesado e monta uma teia de acordos que reproduzem, à chinesa, os métodos de cooperação — e cooptação — que propiciaram a hegemonia americana. A teia já está sendo tecida também bem no quintal latino-americano dos EUA. “No século XIX, o mundo foi europeizado”, escreve Parag Khanna. “No século XX, foi americanizado. Agora, no século XXI, o mundo está sendo irreversivelmente asiaticanizado.” Vamos chorar de saudade do imperialismo americano?
Publicado em VEJA de 14 de outubro de 2020, edição nº 2708