“A Senhora” de Mianmar: mártir, vilã, vítima de novo, uma vida de novela
Num golpe militar à moda antiga, Aung San Suu Kyi, a incensada líder birmanesa que caiu em desgraça para o Ocidente, volta à prisão
É quase impossível descrever a vida político-religiosa de Mianmar, a antiga Birmânia, um país onde muçulmanos são vítimas, budistas viraram radicais e golpes militares são dados com base na astrologia.
Nesse mosaico de mais de 130 grupos étnicos, Aung San Suu Kyi foi, durante muito tempo, uma bênção para os ocidentais. Bela, ereta, digna, filha de um “pai da pátria” e casada com um professor de Oxford, ela se transformou num símbolo das mais nobre das lutas, a pela liberdade.
Com domínio das duas realidades, a ocidental e a asiática, ela enfrentou bravamente mais de uma década de prisão domiciliar, período em que ganhou o tratamento respeitoso de “The Lady” ou “a Senhora” – o mesmo nome do filme biográfico, e hagiográfico, de Luc Besson.
A prisão é exatamente o lugar para onde voltou, depois que a cúpula militar, que havia permitido desde 2011 um sistema de democracia vigiada, deu um golpe à moda antiga, com tanques nas ruas, televisão silenciada, toque de recolher e todos os líderes civis na cadeia. Fora um toque mais contemporâneo: blecaute da internet.
O golpe impediu a posse dos novos integrantes do parlamento – mais de 80% pertencentes ao partido da Senhora, a Liga Nacional pela Democracia. Cerca de 400 parlamentares estão presos num “centro de detenção a céu aberto”, segundo falou uma deputada que conseguiu se comunicar por celular e pediu anonimato.
Ocupando um posto que seria equivalente ao de primeira-ministra, Aung San Suu Kyi hoje desfruta de muito menos simpatias internacionais do que na época em que se transformou num símbolo da resistência pacífica, com um visual diferenciado pelas flores naturais no cabelo e os elegantes trajes tradicionais.
É possível que, da mesma maneira como houve um certo exagero em sua beatificação, consagrada por todas as mais prestigiosas premiações, do Nobel da Paz ao Sakharov, do Simón Bolívar à medalha de ouro do Congresso americano, tenha havido excessos em sua condenação.
Motivo: a perseguição a uma minoria, os rohingyas, originalmente muçulmanos do que é hoje Bangladesh, o paupérrimo país onde hoje vivem em campos de refugiados.
As perseguições e o deslocamento forçado, entre abusos bárbaros, transformaram-se em bandeira de países muçulmanos ricos do Golfo e criaram uma situação rara, em que muçulmanos são vítimas, ao contrário do que acontece regularmente, com seguidores do Islã mais radical acossando seguidores de outras religiões.
Por que Aung San Suu Kyi não condenou as atrocidades? A resposta, como tantas outras coisas do mundo real, é complicada.
Primeiro, por realismo político. Não só os militares, como também os cidadãos comuns que seguem, fervorosamente, o budismo, têm uma extrema aversão pela minoria muçulmana.
Segundo, porque os abusos não aconteceram no vácuo.
Mianmar, que mudou de nome na época do regime militar original para se afastar da época do domínio colonial britânico, é um país cheio de minorias étnicas, muitas em conflito com os birmaneses dominantes ou entre si.
Os rohingyas são – ou eram – concentrados em Arakan, região onde é majoritária a etnia de mesmo nome. No início dos anos 2000, houve, como em tantos outros territórios, uma radicalização ao estilo jihadista, com grupos armados muçulmanos defendendo a independência numa área onde já existe um movimento separatista.
Os jihadistas lançaram ataques contra cidadãos comuns e bases da polícia e do exército, desencadeando a revolta da opinião pública, a brutal repressão militar e até algo que parece inteiramente contraditório, milícias budistas menos interessadas em meditação e iluminação, e mais no brutalmente bíblico olho por olho.
Aung San Suu Kyi escolheu ficar do lado dos militares, posição que levou ao Tribunal Internacional de Haia, para onde foi levada a acusação de genocídio. “A princesa presa na torre se transformou na bruxa má”, foi um dos comentários que resumiu a posição dela.
Voltará ela à posição de heroína perseguida? Ou conseguirá um novo acordo de partilha do poder com o chefão militar, o general Min Aung Hlang?
Pelo acordo anterior, o Tatmadaw, como é chamado o Exército, tem direito a 25% dos deputados no Parlamento, além dos ministérios ligados à segurança.
Talvez as respostas estejam nos astros, freneticamente consultados pelos birmaneses em todas as instâncias, inclusive nos milhares e milhares de templos budistas que são um dos tesouros do país, preservado pelo fervor religioso e pelas décadas de o isolamento.
Uma coisa é garantida: com um regime que nem sequer finge fazer concessões democráticas e Aung San Suu Kyi desprovida da aura de mártir da democracia que tinha no Ocidente, Mianmar inevitavelmente se aproximará mais da órbita chinesa.
No regime anterior, os generais não faziam nada sem consultar seus astrólogos.
Hoje, é a estrela vermelha que brilha cada vez mais no firmamento.