Brasil atira contra a galinha dos ovos de ouro
China aumentou as compras no Brasil no semestre em que as exportações caíram, mas o país tem sido alvo de tiros disparados pelo bolsonarismo
Nesse primeiro semestre do ano, atingido em cheio pela pandemia, a China salvou a balança comercial. Mesmo assim, o país asiático tem sido alvo de inúmeros disparos hostis da política externa brasileira. Diplomatas tentam entender esses tiros na galinha de ovos de ouro, ou no próprio pé da economia brasileira. Para se ter uma ideia: as vendas para a China cresceram 15% de janeiro a junho, enquanto as exportações para o resto do mundo caíram os mesmos 15%. Técnicos do Itamaraty já se preocupam com o fato de a China estar investindo forte na África para torná-la, a longo prazo, seu celeiro de alimentos, o que atingiria em cheio o Brasil.
Isso não acontece por acaso. Recentemente, o Brasil e os Estados Unidos submeteram a proposta na Organização Mundial do Comércio (OMC), na qual defendem que o princípio da economia de mercado precisa valer para todos os seus membros. A desculpa pública é a de garantir competição econômica “mais justa” no comércio internacional. Mas o objetivo é o de ferir a China e tentar empurrá-la para fora da OMC, já que a economia do país tem forte intervenção estatal.
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Clique e AssineUm ponto claro sobre como ser caudatário do trumpismo – e pôr a China para escanteio – pode nos atrapalhar é a política em relação à adoção no Brasil da tecnologia 5G, que vai ser um salto na internet. O Brasil tem dado sinais de que vai seguir a orientação americana de impedir que a Huawei participe da competição para fornecimento da tecnologia e equipamentos. Mas, como não consegue tomar a decisão, está adiando o leilão. Desta forma, o país se atrasa em tudo, inclusive na competitividade empresarial que essa nova tecnologia permitirá.
Esse é apenas mais um dos casos em que se ataca o maior parceiro comercial do Brasil – mesmo quando isso nos prejudica – na gestão Jair Bolsonaro. Na campanha de 2018, o então candidato de extrema-direita, motivado pelo seu forte viés ideológico, sinalizou o que seria a postura do seu governo em relação ao país asiático. “A China não está comprando do Brasil, está comprando o Brasil”, afirmou na época. A declaração repercutiu em vários jornais do mundo e desagradou os representantes chineses no país.
De lá para cá, os ataques continuaram. Em março deste ano, o deputado Eduardo Bolsonaro, filho 03 do presidente, também repetindo a cartilha norte-americana, atacou a China por causa da crise sanitária gerada pela Covid-19. “Quem assistiu Chernobyl vai entender o que ocorreu. Substitua a usina nuclear pelo coronavírus e a ditadura soviética pela chinesa. [Mais uma] vez uma ditadura preferiu esconder algo grave a expor tendo desgaste, mas que salvaria inúmeras vidas. A culpa é da China e [a] liberdade seria a solução”, afirmou ele, com o agravante de ser o presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara.
Para quem não se lembra, a declaração do deputado gerou forte reação do embaixador chinês no Brasil, Yang Wanming, que foi às redes sociais afirmar que Eduardo não tinha visão internacional ou senso. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, teve que entrar no circuito para pedir desculpas ao povo chinês pelas “palavras irrefletidas” do filho 03. Até o vice-presidente Hamilton Mourão interveio para apaziguar os ânimos. Afirmou que o deputado não representava o governo e que se Eduardo tivesse o sobrenome “bananinha” – apelido que acabou pegando nas redes sociais – não teria problema nenhum.
Além do filho do presidente, o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub e o chanceler Ernesto Araújo também já estiveram nos holofotes no que diz respeito à relação conflituosa do atual governo com a China. O primeiro é investigado em inquérito pela suspeita de praticar crime de racismo ao insinuar, estigmatizando a forma de falar dos chineses, que o país asiático seria beneficiado pela crise. O segundo disse, em aula a formandos do Itamaraty, que não ia “vender sua alma [para] exportar minério de ferro e soja” para país comunista. Ou seja, nenhum dos dois entendeu a dimensão dos cargos para os quais foram designados. Araújo ainda permanece nele.
A China assumiu uma dimensão imensa no comércio exterior brasileiro. Em 2019, o país asiático foi responsável por mais que o dobro das receitas que vieram através das exportações para os Estados Unidos, por exemplo. Em 2018, atingiu o recorde de R$ 400 bilhões na corrente de comércio entre os países.
Só isso já deveria ser motivo para um refluxo da ala ideológica do governo, especialmente quando o agravamento da crise econômica imposto pela pandemia será inevitável. O presidente até tentou encenar uma aproximação na visita que fez ao país em outubro do ano passado, mas o gesto ficou aquém dos inúmeros atritos. No grave momento atual, o que resta é torcer para os ânimos se acalmarem dos dois lados. A China pode ser o grande investidor na retomada do Brasil. Não faz sentido o governo criar mais um obstáculo para a economia claudicante do país.