Do lado dele
Se Mel Gibson um dia ganhar uma nova chance, será graças a amizades leais como a de Jodie Foster
Walter Black é um caso clássico de depressão refratária. Nada – terapia, medicamentos, bater tambor em retiros espirituais – foi capaz de tirá-lo do estado de morte em vida em que ele se encontra. Com o filho pequeno tornando-se uma criança introvertida e a rebelião do filho adolescente fugindo ao controle, Meredith, a mulher de Walter, pede que ele saia de casa. Walter sai e, na mesma noite, tenta o suicídio. Fracassa também nisso, e se vê humilhado, no chão de um quarto de hotel, com um fantoche de castor que tirara de uma lixeira na mão esquerda. Ao que o boneco se torna o porta-voz de uma parte de Walter com a qual ele perdera contato: falando com um sotaque londrino grosseiro e voz roufenha, o Castor é vibrante, tem energia e propósito e domina Walter. Não o substituindo, mas interpondo-se entre o homem real e o mundo que é demais para ele. Haja estranheza: se depois de tantos espetáculos deploráveis protagonizados nos últimos anos – embriaguez, destempero verbal, agressão à ex-namorada – seria difícil propor à plateia que se dispusesse a ver Mel Gibson mesmo em um de seus papéis habituais, que dirá na pele de um personagem que quase só fala por intermédio de um fantoche, como em Um Novo Despertar. E, no entanto, se ainda há qualquer razão para que se dê uma nova chance a Gibson, ela está aqui. Jodie Foster, amiga leal dele desde que filmaram juntos Maverick, em 1993, faz deste seu terceiro trabalho na direção (no qual também interpreta Meredith) uma demonstração insatisfatória na execução, mas não no sentimento, de que ao menos como ator Gibson ainda está longe do fim da linha.
Um Novo Despertar foi rodado quando o astro já virara escândalo em razão de seus rompantes antissemitas, e está sendo lançado pouco depois de ele ter recebido uma sentença de 36 meses a ser cumprida em liberdade pelas agressões à ex Oksana Grigorieva. Tal é o repúdio a ele hoje (a equipe de Se Beber, Não Case! Parte 2 ameaçou greve caso Gibson ganhasse uma ponta no filme) que já se havia esquecido que ele pode ser um ator imensamente comunicativo e eficaz.
Em Um Novo Despertar, seu desempenho vocal e na manipulação do fantoche é irresistível, tanto que quase obscurece sua atuação parcimoniosa, mas também ela irretocável, como Walter Black. Há ainda que creditar a ele certa coragem por abraçar sem reserva um personagem tão próximo de si mesmo – de um homem que é um desastre mas, apesar de saber sê-lo, não consegue derrotar os aspectos negativos de sua personalidade ou sequer evitar que eles se tornem os mais proeminentes e definitivos. Se o filme peca, é por ocultar sob sua aparente ousadia um drama familiar desses excessivamente organizados, em que todas as partes desajustadas convergem para a harmonia; não parece ser isso o que está nas cartas para Gibson. Mas, se houver algo de bom nelas depois de uma tão completa queda em desgraça, não há dúvida de que será por causa de amizades como a de Jodie – não só leal como intrépida, dessas que estão lá para o que der e o que vier.
Isabela Boscov
Publicado originalmente na revista VEJA no dia 25/05/2011
Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
Continua após a publicidade
© Abril Comunicações S.A., 2011
UM NOVO DESPERTAR
(The Beaver)
Estados Unidos, 2011
Direção: Jodie Foster
Com Mel Gibson, Jodie Foster, Anton Yelchin, Cherry Jones, Jennifer Lawrence, Riley Thomas Stewart