Nasir Khan, ou “Naz”, é nova-iorquino, filho de imigrantes paquistaneses, ótimo aluno na faculdade e um pouco tímido e inexperiente. Um convite para uma festa numa sexta-feira à noite o deixa tão ansioso que, quando sua carona dá o cano, ele pega escondido as chaves do táxi do pai e vai sozinho procurar o endereço em Manhattan. Naz não sabe desligar o sinal luminoso do táxi; gente fazendo sinal para ele na rua o xinga quando ele passa reto, e dois passageiros que entram no carro enquanto ele está parado no meio-fio compram briga quando ele diz que está fora de serviço. Uma patrulha policial tira sarro dele (“Qual o problema aí, Mr. Bubba?”, pergunta o polícia, começando a conversa pelo insulto racial). Outra pessoa entra no táxi, mas essa Naz não tem coragem de expulsar: a menina é tão bonita que a atividade cerebral dele imediatamente entra em queda livre. Feito besta, Naz dirige com ela pela noite, para na beira do rio para ela olhar a paisagem – ela é ainda mais problemática do que bonita, claro –, vai com ela até a casa bacana em que ela mora sozinha, bebe, cheira (ele nunca bebe nem usa drogas, mas, ei, essa menina!), começa umas brincadeiras esquisitas de faca com ela, e a coisa esquenta.
ATENÇÃO: O QUE VEM A SEGUIR PODE SER CONSIDERADO SPOILER, MAS É APENAS O PONTO DE PARTIDA DA SÉRIE
Quando Naz acorda, horas depois, ela está morta. Espetacularmente morta: retalhada a facadas, a cama e as paredes encharcadas de sangue.
Está começando o pior dia da vida de Naz e, com ele, uma das séries mais sensacionais dos últimos tempos – de uma qualidade na escrita, nas interpretações, nos diálogos e nos detalhes que de cara põe The Night Of ombro a ombro com The Wire (que teve cinco temporadas entre 2002 e 2008 e talvez seja a melhor série de todos os tempos). Não é coincidência: assim como The Wire, a nova The Night Of é escrita por Richard Price, romancista e roteirista de talento excepcional para a crônica urbana. Price sabe como poucos reproduzir aquelas interações típicas do dia a dia numa cidade, e é isso que torna tão vívida a sequência em que Naz roda com o luminoso do táxi aceso. Mas, quando o negócio são as interações e os relacionamentos no âmbito das delegacias, das viaturas, do xadrez, da detenção, das salas de interrogatório e das salas dos tribunais – aí ele não tem rival, e é positivamente brilhante.
Quando Price adentra esse universo, ele consegue transformá-lo num veículo para todas as idiossincrasias da vida contemporânea: as infinitas demarcações de raça, classe, instrução e geração que determinam o sentido e a velocidade com que as engrenagens rodam e o lugar que cada um pode esperar ocupar nelas. Os personagens de Price são inevitavelmente cansados e desencantados – inclusive aqueles que, por obstinação, mantêm algum senso de justiça. E, com frequência, esse senso de justiça pouco tem a ver com aquilo que as pessoas que têm a sorte de ser ignorantes acerca desse universo entenderiam por certo e errado. Desde o início, o que fica claro no triângulo formado por Naz, o detetive veterano Dennis Box (Bill Camp) e o advogado de porta de cadeia Jack Stone (John Turturro) é que a verdade sobre o que aconteceu na casa da moça não é bem a prioridade de ninguém; diz Stone ao seu cliente assustado, “não me venha com a verdade – não quero ficar preso a ela”. Por The Night Of ser tão bem escrita, estou apostando que, além disso, ela será também um mistério policial de primeira e não vai tirar da cartola um autor do crime qualquer. Eu poderiar jurar que ele já foi apresentado ao espectador. Com dois episódios já assistidos, tenho três suspeitos principais em vista.
Em The Wire, Richard Price trabalhou em dupla com David Simon, repórter policial veterano que conhecia cada beco de Baltimore, onde se passava a história de uma força-tarefa de investigação do tráfico. Em The Night Of ele trabalha em parceria com Peter Moffat, autor da série inglesa Criminal Justice, que deu origem a esta versão americana, e com Steven Zaillian, roteirista de A Lista de Schindler, Missão: Impossível e Gangues de Nova York e diretor de Lances Inocentes e A Grande Ilusão. O inglês Moffat entra com o conceito e a sutileza com que incontáveis elementos são postos em cena. E o que Zaillian traz é uma belíssima concepção cinematográfica para a série. Do desenho de produção da grande Patrizia von Brandenstein à fotografia de Robert Elswit, The Night Of reúne o melhor de dois mundos: casa o ritmo de cinema de cada episódio ao arco dramático amplo, todo dedicado a seguir a evolução de Naz ao longo de oito episódios. Nisso ela se parece com Sopranos mais do que com qualquer outra série; cada capítulo explora um gênero ou tonalidade diferente, de acordo com o ângulo do caso que está mais em evidência naquele momento. Já na evolução de Naz a que eu me referi – aí, pelo que andei lendo, quem assistiu ao filme francês O Profeta vai intuir que rumo ela deve tomar.
O aspecto mais arrojado de The Night Of é esse, o seu protagonismo: já na escalação dos atores, vem implícita a situação delicada dos imigrantes de países muçulmanos numa cidade em que todos co-existem, mas não necessariamente convivem. Naz é interpretado pelo inglês Riz Ahmed, de Estrada para Guantánamo, formado em Economia e Política em Oxford. Seus pais são vividos pela estrela de Bollywood Poorna Jagannathan e pelo magnífico Peyman Moaadi, de A Separação, que nasceu em Nova York e foi criado no Irã. Depreende-se que, como tantos outros que chegaram aos Estados Unidos nas últimas décadas vindos de regiões conflagradas, eles são pessoas instruídas que tiveram de descer um degrau ou mais na profissão para poder se estabelecer – e que têm de aceitar ser chamados de “Mustafá” e “cabeça de toalha” por qualquer um na rua (é impressionante a casualidade com que todo mundo o faz).
Até o final do segundo episódio, não houve nenhum indício de que a religião seja importante para Naz e sua família ou para o enredo. Mas as associações dos outros personagens, ao olhar para Naz, com radicalismo, fanatismo e reacionarismo são constantes. Dentro de todo seu azar, é possível que a maior sorte de Naz tenha mesmo sido topar com Jack Stone: amarrotado, mal-vestido, mal penteado, desconsiderado pelos plantonistas das delegacias e atormentado por um eczema horrendo nos pés, ele é o único tipo de advogado que aceitaria representar um cliente com tanta coisa contra si – não só as provas, mas sobretudo a origem. John Turturro, aliás, está maravilhoso no papel; repare no sorriso que ele abre ao ser cumprimentado pelo juiz por ter conseguido um caso de homicídio. Está tão bem que me faz esquecer que o papel foi bolado por e para James Gandolfini, que morreu um mês após propor o piloto da série.