‘O Escândalo’: A batalha das loiras
Por meio de duas personagens reais e uma fictícia, filme disseca os mecanismos que levam mulheres empoderadas à cumplicidade com uma cultura de assédio
Kayla (Margot Robbie), uma jovem produtora que se define como uma “millennial evangélica” e se sente perfeitamente à vontade com a doutrina ultraconservadora e não raro agressiva da Fox News, acha que não ouviu direito. Ouviu, sim. Mas, para que não reste dúvida, o sujeito repete o que acabou de dizer: que Kayla suba o vestido até acima da calcinha e dê algumas voltas para ele avaliar se ela merece ficar diante das câmeras. Kayla achou que ia conversar sobre seu progresso profissional; agora está horrorizada e quase chorando. O sujeito, idoso e corpulento, está salivando. E o espectador possivelmente estará se perguntando se, em pleno 2015, algo assim poderia ocorrer na sala do executivo-chefe de uma das maiores corporações de mídia do mundo. De acordo com os depoimentos concedidos aos realizadores de O Escândalo (Bombshell, Estados Unidos, 2019; já em cartaz no país) por cerca de duas dezenas de funcionárias ou ex-funcionárias da emissora, coisas como essa, e coisas bem piores, aconteciam regularmente. É com base nesses depoimentos anônimos que foi criada a personagem de Kayla Pospisil. Já as outras personagens vêm com seus nomes reais (confira os principais deles nas legendas da reportagem). Começam pelas duas outras protagonistas, as âncoras Megyn Kelly (Charlize Theron) e Gretchen Carlson (Nicole Kidman). Passam por figuras célebres mas periféricas à história, como Bill O’Reilly e Rudolph Giuliani. E terminam com o sujeito da cena estarrecedora descrita acima: Roger Ailes (John Lithgow), então presidente da Fox News, xamã da ultradireita americana e pivô de um escândalo sem precedentes, por ter feito da multidão de moças de vestidos curtos, pernas compridas e cabelos armados da emissora sua reserva sexual particular.
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Como personagem e como atriz, é Charlize Theron a força que sustenta O Escândalo e corrige a rota às vezes errática do filme. Em 2015, escolhida pela Fox News para moderar os debates entre os pré-candidatos presidenciais republicanos, a âncora Megyn Kelly se viu puxada para uma briga de botequim com Donald Trump. Prata da casa e fiel à linha ideológica da emissora, a advogada de formação Megyn entretanto sentiu-se compelida a desobedecer a ordens e questionar o candidato sobre seu desrespeito habitual às mulheres. Furioso, Trump deflagrou um bombardeio de tuítes grosseiros contra a jornalista. No mais famoso deles, dizia que “ela estava sangrando pelos olhos, e por outros lugares”.
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Atônita com a baixaria e transformada ela própria em notícia, a inteligente, competente e bastante fria Megyn detectou uma mudança de eixo em si mesma, a qual se combinou a outro evento: os boatos de que a apresentadora Gretchen Carlson, que acabara de ser demitida por se indispor com Roger Ailes, estava abrindo contra ele um processo por antigos abusos sexuais (a decisão de Gretchen de se apresentar sem maquiagem no Dia da Menina teria irritado sobremaneira o chefe: “Ninguém quer ver uma mulher suando menopausa afora”). Sempre muito próxima de Ailes, Megyn começou, no entanto, a calcular os prós e os contras de também ela denunciar os abusos a que o executivo a submetera no passado.
A marola virou maremoto: as denúncias foram se somando e ganhando um caráter cada vez mais sórdido — Ailes era tão sistemático no assédio que usava uma assistente como cafetina —, até desembocarem em várias indenizações concedidas mediante acordos de sigilo e na demissão de Ailes pelo dono da corporação e velho amigo Rupert Murdoch (Malcolm McDowell). A direção de Jay Roach, de comédias como Entrando numa Fria e Austin Powers, às vezes escapa da sátira para a paródia, mas detectar esse ponto de inflexão — o momento em que uma prática sempre tolerada por uma pessoa abruptamente se torna intolerável para ela — e registrar o avolumar de uma situação desse tipo é o que O Escândalo faz melhor. Contribuem muito para isso o roteiro de Charles Randolph, de A Grande Aposta, e o prumo e as complicações que Charlize confere à sua personagem. Auxiliada por próteses que dão a ela o queixo combativo de Megyn Kelly, a atriz se supera de fato no mapeamento dos pactos íntimos feitos por uma mulher que qualquer um hesitaria em caracterizar como vítima, e que em boa medida colaborara com a cultura contra a qual decide se voltar (a âncora, afinal, preferiu contemporizar com Trump publicamente, e é conhecida por algumas argumentações de indefensável teor racista).
Se o temperamento e a personalidade de Megyn a tornam uma figura tão instigante para esse tipo de discussão, Gretchen Carlson e a fictícia Kayla Pospisil representam outras facetas possíveis do mesmo problema. Uma ex-miss América de modos suaves, Gretchen seria um caso clássico de mulher que se deixou ser tão valorizada pela aparência que se sente sem autoridade em todo o resto — e Nicole Kidman faz um belo trabalho de levá-la ao seu “basta” e encontrar nela a bravura necessária para litigar contra um homem tão poderoso quanto Ailes. Kayla, por sua vez, é a mulher que descobre da pior maneira possível que não é tão fácil assim abraçar de uma filosofia ou conduta só o que lhe convém; o indesejável em geral vem junto. Ver no rosto de Margot Robbie esse rude despertar, durante os longos minutos da tortura de Kayla na sala de Roger Ailes, é o tipo de imagem que vale por mil palavras de ordem.
Publicado em VEJA de 22 de janeiro de 2020, edição nº 2670
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