O Círculo
Assustado e ingênuo, filme acha que a tecnologia vai transformar todos em clones sem alma
Mae (Emma Watson) mal pode acreditar na sua sorte em arrumar trabalho na Circle: misto de Google e Apple (Tom Hanks é o CEO visionário à moda de Steve Jobs), a megacorporação de tecnologia é desses lugares que, de fora, parecem coisa de sonho. Quadras de tudo quanto é esporte, restaurantes, mil atividades de lazer, grupos de apoio e até apartamentos para os funcionários se instalarem quando não dá tempo de voltar para casa – não há nada que a empresa não ofereça aos funcionários. Também não há nada que ela não saiba sobre cada um deles, porque esse é o seu negócio: aniquilar aos poucos toda privacidade por meio de plataformas como o TrueYou (imagine um FaceBook elevado à enésima potência) e o SeeChange, que integra milhões de câmeras minúsculas que qualquer um pode grudar em qualquer lugar.
Inicialmente ressabiada com uma cultura corporativa tão invasiva, Mae veste a camisa quando o CEO Eamon Bailey em pessoa lhe oferece um plano de saúde com cobertura ilimitada para seu pai, que sofre de esclerose múltipla – e monitoração ininterrupta de todos os dados vitais dele e também dela. O passo seguinte, ao qual o roteiro chega com algumas manobras altamente inverossímeis e muito desajeitadas, é Mae decidir se tornar a primeira pessoa a adotar a “transparência total”: fora um ou outro intervalo de 5 minutos para o banheiro, tudo o que ela faz, diz ou conversa é transmitido 24 horas por dia, sete dias por semanas, para o mundo inteiro. De nada adianta o aviso dado por um sujeito que ronda o câmpus da empresa sem função conhecida (e o mesmo vale para o papel que deram ao pobre John Boyega, de Star Wars: O Despertar da Força), de que Bailey e seu sócio (Patton Oswald) são do mal: como uma tonta, Mae repete os slogans fascistoides da empresa da qual virou garota-propaganda – “Segredos são mentiras” e “Privacidade é roubo”. Diz o personagem de Boyega: “Não foi para isso que eu inventei o TrueYou”. Para que foi, então? O filme não diz, ou nem sabe.
Adaptado do romance homonônimo de Dave Eggers, O Círculo adota a tática da série Black Mirror, de aprofundar e intensificar uma tecnologia que já existe e então desdobrar as consequências possíveis do seu uso. Black Mirror faz isso muito bem, porque usa uma ferramenta que O Círculo desconhece – a lógica – e porque não vilaniza a tecnologia em si: quer apenas investigar quais traços do comportamento humano ela poderia encorajar. Como o comportamento humano é repleto de traços não muito louváveis, os cenários quase sempre evoluem para uma situação surreal ou de pesadelo. Mas, acima de tudo, Black Mirror não olha de fora; olha de dentro. Os roteiristas e os personagens são cada um de nós – usuários ávidos de novidades tecnológicas e os grandes impulsionadores da busca por mais e mais inovação, mais conectividade, mais compartilhamento, mais simultaneidade, mais camadas virtuais sobre o mundo real. Black Mirror não julga; antes, pergunta-se se estamos, cada um de nós, pesando as consequências do que decidimos fazer.
O Círculo afeta ter essa mesma visão crítica e reflexiva, mas ela é só embalagem. É um filme que parte de uma boa ideia, mas a articula mal, dividindo-se entre “nós”, vitimas inocentes e manipuláveis do que nos propõem, e “eles”, a corporação malévola de ambições totalitárias e discurso messiânico. Dave Eggers e o diretor e corroteirista James Ponsoldt pretendem replicar o clima de Invasion of the Body Snatchers (filmado em 1956 como Vampiros de Almas e em 1978 como Invasores de Corpos), em que os seres humanos vão sendo substituídos por clones obedientes e sem alma. Pretendem evocar, sobretudo, o 1984 de George Orwell, com seu Big Brother ameaçador e censório que tudo vê – mas, sem o discernimento histórico nem a inteligência analítica de uma fonte e de outra, conseguem ser apenas ingênuos. Bobos, até. Não é de estranhar que Emma Watson, tão bem em A Bela e a Fera, e Tom Hanks e Patton Oswalt, tão tarimbados e talentosos, pareçam estar o tempo todo procurando pé nessa história, sem encontrá-lo. O círculo do título deveria representar algo que abrange tudo e nada deixa escapar, mas designa apenas um filme que não sabe se está indo ou vindo, nem aonde quer chegar.
P.S.: Numa coincidência muito triste, ambos os atores que interpretam os pais de Mae morreram desde que a filmagem foi completada. Bil, Paxton se foi em 25 de fevereiro, aos 61 anos, e Glenne Headly, em 8 de junho, aos 62 anos.
Trailer
O CÍRCULO (The Circle) Estados Unidos, 2017 Direção: James Ponsoldt Com Emma Watson, Tom Hanks, Ellar Coltrane, Karen Gillan, Patton Oswalt, Bill Paxton, Glenne Headly, Nate Corddry Distribuição: Imagem |