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“Mãe!”: Ame ou deteste, mas é formidável

Estupenda, Jennifer Lawrence é o eixo em torno do qual gira a alegoria bíblica radical do diretor Darren Aronofsky

Por Isabela Boscov 22 set 2017, 17h47

Para mim, não existe experiência melhor no cinema do que a de ser submergida, por inteiro, no mundo de uma outra pessoa – especialmente quando a construção desse mundo é tão indivísivel que não há brecha ou trinca pela qual se possa escapar. Em Mãe!, na verdade, não há nem por onde respirar; o espectador está tão preso à casa em que se passa a história quanto a própria protagonista, uma jovem casada com um poeta mais velho que, sem conseguir criar, está cada vez mais distante e impaciente no trato com ela. Os personagens não têm nomes; também não há nenhum acesso para a casa antiga e imensa no meio de um prado cercado por um bosque, que Mãe (Jennifer Lawrence) cuida de restaurar. A casa pertence ao poeta, Ele (Javier Bardem), e a certa altura foi perdida num incêndio. Tudo o que sobrou dela foi um cristal que Ele guarda com ciúme, e não permite a ninguém tocar. Mãe reconstruiu tudo sozinha – cada viga, cada tábua, cada prego e cada azulejo. Mãe está tão ligada à casa que, quando encosta o rosto em alguma parede, a sente pulsar, como se a casa fosse viva e o sangue estivesse circulando por ela. Seu outro trabalho é tentar apoiar Ele, e suportar seu humor cada vez mais caprichoso e instável. Por isso, quando um completo estranho bate à porta e Ele simplesmente o convida a ficar, Mãe hesita, mas engole suas reservas: Ele não deve ser contrariado. Homem (Ed Harris) é dado a familiaridades excessivas. Naquela noite, bebe tanto que a Mãe é despertada pelo som do seu vômito – e, espiando pela porta do banheiro, ela percebe que Homem tem um corte profundo na altura das costelas. Na manhã seguinte, tão misteriosamente quanto Homem, quem bate à porta é a esposa dele, Mulher (Michelle Pfeiffer). Intrometida, indiscreta, curiosa e espaçosa, Mulher toma conta da casa como se fosse ela a dona, e logo chama também seus dois filhos. Não há nada que Mãe possa fazer: Ele está embriagado com a devoção que os estranhos lhe dedicam.

Mãe!
(Paramount/Divulgação)

Para quem não pegou a dica, o diretor/roteirista Darren Aronofsky está reencenando o Gênese – um Gênese peculiar, mas nem por isso menos Gênese. Tendo criado o Éden, Deus está esgotado, sem saber o que fazer em seguida; instala então nele Adão e depois Eva, que vai fazer o que não devia; entram em cena os filhos deles, Caim e Abel, e aí as tragédias começam a se precipitar: é a Queda do Homem. Multidões vindas não se sabe de onde tentam entrar na casa para celebrar Ele, raves orgiásticas acontecem, guerras sangrentas se espalham pelos cômodos. É um tumulto terrível, que Aronofsky cria em um crescendo incessante, sem pausa nem trégua. É exaustivo, incômodo, atordoante e às vezes assustador – mas é também absolutamente formidável. De certa forma, Aronofsky nunca correu um risco tão grande. Todo esse estrondo conta com um único elemento para girar no sentido certo: a atuação de Jennifer Lawrence. Mas ela é, ela própria, estrondosa (assim como a de Michelle Pfeiffer, que está sensacional).

Mãe!
(Paramount/Divulgação)

No Festival de Toronto, duas semanas atrás, teve gente que vaiou Mãe! no fim da sessão, e uns tantos que aplaudiram. Eu certamente ficaria no segundo grupo: adoro quando um filme me chacoalha e exige de mim, como faz Mãe!. Nos seus grandes momentos (Pi, Réquiem para um Sonho, O Lutador, Cisne Negro) e até nos seus momentos duvidosos (A Fonte da Vida, Noé), Aronofsky provoca e arranca o espectador da complacência. Visualmente, ele pode ser magistral, e Mãe! é seu auge nesse sentido (em outros também). A encenação aqui não tem nem a ligação mais remota que seja com qualquer tipo de realismo, mas é cristalina na sua balbúrdia, e franciscana no seu exagero: não há nenhum plano no corte final que não obededeça a uma necessidade e não tenha uma função, e a edição de som, da qual muito do sentido depende, é estupenda.

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Mãe!
(Paramount/Divulgação)

Quando o tecido de um filme é assim contínuo – sem costuras, apenas com uma intensidade e um volume cada vez maiores –, é lógico que, em decorrência, ele tenha de ser aceito por inteiro, ou também rejeitado integralmente. Entendo por que alguns espectadores possam vir a detestar Mãe!. Mas até com estes vou argumentar que, nos seus próprios termos, Aronofsky alcançou aqui um triunfo: uma alegoria que serve para indagar em vez de ilustrar, e que se espraia numa infinidade de sentidos paralelos, conforme a bagagem pessoal que o espectador leve consigo para a sala. E uma experiência cinematográfica tão única e radical que, sozinha, é capaz de reafirmar a confiança que eu ainda tenho no cinema como um lugar ideal para criadores inquietos, que arriscam tudo no que estão criando e, ocasionalmente, não têm medo de pôr tudo pelo chão e começar de novo para ver se, desta vez, dá certo.


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Trailer

MÃE!
(Mother!)
Estados Unidos, 2017
Direção: Darren Aronofsky
Com Jennifer Lawrence, Javier Bardem, Michelle Pfeiffer, Ed Harris, Brian Gleeson, Domhnall Gleeson, Kristen Wiig
Distribuição: Paramount
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