‘Loucos por Justiça’ é bem mais que um thriller de vingança
O formidável Mads Mikkelsen cobra com as próprias mãos uma perda trágica em um filme que também é comédia, drama e fábula tocante
Na Estônia, uma garota convence o avô a lhe dar de Natal a bicicleta que ela tanto quer — não a vermelha que está ali à venda na oficina, mas uma azul. “Pode deixar que eu vou arranjar uma”, diz o vendedor. E assim, partindo de um pedido tão inocente, o diretor Anders Thomas Jensen põe em marcha em Loucos por Justiça (Riders of Justice/Retfærdighedens Ryttere, Dinamarca/Suécia/Finlândia, 2020) uma sucessão de eventos que do outro lado do Mar Báltico, na Dinamarca, vai irromper e se espraiar até culminar em um banho de sangue: uma bicicleta azul é roubada (a oficina na Estônia tinha mesmo um ar muito suspeito), uma garota vai pedir carona de carro à mãe, um telefonema vai fazer a mãe desistir do carro e sugerir uma viagem de trem, um acidente terrível vai acontecer — e, na esteira dele, Markus (Mads Mikkelsen), soldado das Forças Especiais dinamarquesas em missão no Oriente Médio, vai voltar antes do previsto para casa, onde os estatísticos Otto (Nikolaj Lie Kaas) e Lennart (Lars Brygmann) vão procurá-lo para expor sua teoria de que nem tudo que parece ser um acidente necessariamente o é.
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Da mesma forma, nem tudo que soa como uma trama de vingança à moda de Desejo de Matar precisa automaticamente sê-lo. Também autor do roteiro, Jensen desdobra a premissa de Loucos por Justiça — disponível para aluguel a partir desta sexta-feira 6 no Now, no Google Play e em outros serviços — com uma imaginação e um brio que ao mesmo tempo confirmam e desmentem o que se espera de seu filme e tragam o espectador para dentro dele — graças também a um fator que desafia a lei das probabilidades mas foi já várias vezes confirmado de forma empírica: o de que um filme com o formidável Mads Mikkelsen é invariavelmente um filme que merece ser visto. O próprio Jensen contribuiu muito para demonstrar essa tese: em todos os cinco filmes que dirigiu, trabalhou com Mikkelsen e com o também ótimo Kaas, mais conhecido aqui pelos quatro filmes da série Departamento Q e um mestre na arte dos personagens dolorosamente ineptos no convívio social. (Por questão de justiça, é preciso dizer quanto antes que não há ninguém menos do que excelente em todo o elenco.)
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Tudo que Otto tem de medroso e hesitante e Lennart, de extrovertido e enxerido, Markus tem de impassível por fora e implosivo por dentro. Um desses homens que vivem em estado permanente de fúria silenciosa, ele entra em modo demolidor ao ouvir da dupla que, no caso do acidente que causou sua perda, os indícios apontam para algo planejado com frieza, sem qualquer consideração pelas vidas inocentes apanhadas no plano. Markus tem uma filha adolescente, Mathilde (Andrea Heick Gadeberg), que não reconhece mais o pai e está sofrendo, mas ele se cega para o fato de que também ela será uma vida inocente apanhada na sua missão de vingança — assim como Otto e Lennart, ou Emmenthaler (Nicolas Bro), o amigo craque nos computadores e cheio de melindres trazido para a conspiração, ou o namorado encantador da filha, Sirius (Albert Rudbeck Lindhardt), que aliás cozinha muito bem, ou ainda Bodashka (Gustav Lindh), um doce garoto de programa ucraniano que a certa altura entra na história e deixa a casa de Markus um brinco.
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Esse olhar afetuoso de Jensen para as peculiaridades da natureza humana mais o modo caloroso como ele acolhe os absurdos da vida transformam Loucos por Justiça: mesmo no meio da selvageria de que Markus é capaz e da violência que às vezes toma a tela, a história que está sendo contada aqui é outra — parte comédia de cinema mudo, em que personagens atrapalhados tentam se manter à tona onde não dá pé, parte um drama tocante sobre como é difícil aceitar que às vezes coisas ruins acontecem e não há ninguém de cuja conta se possa debitá-las. Não há propósito nem nexo no universo, avisa o diretor — a não ser que os atores desse teatro aleatório decidam conferir a ele algum sentido e, na noite de Natal mais linda do cinema desde aquela que Frank Capra deu a James Stewart em A Felicidade Não Se Compra, reúnam-se para comemorar que isso, afinal, é o que menos importa.
Publicado em VEJA de 4 de agosto de 2021, edição nº 2749
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