‘Judy’: Renée Zellweger dá vida à mais trágica estrela de Hollywood
Em um desempenho favorito ao Oscar, a atriz crava em cena os altos e baixos do humor de Judy Garland
Arrastada pela mãe desde os 2 anos de idade para performances em teatros burlescos e cabarés pelo país afora, criada na insegurança, dentro de uma família disfuncional, e projetada para o megaestrelato aos 17 anos com O Mágico de Oz — que, oito décadas após seu lançamento, permanece o campeão entre os musicais —, Judy Garland é a figura mais trágica que o velho star system de Hollywood produziu, e também o exemplo mais fiel de um tipo de trajetória que antes alimentava os estúdios e hoje, menos frequente no cinema, viceja nos reality shows e nos bizarros concursos infantis de beleza e de dança: a da criança tratada como posse e commodity, que vai trocando de mãos, dos pais para empresários e outras figuras controladoras, sem nenhum direito sobre si própria até, adulta, ver-se fadada a manter esse padrão de sujeição. Judy (Estados Unidos/Inglaterra, 2019), já em cartaz no país, trata da culminação de toda uma vida sob esse regime destrutivo ao focalizar os meses caóticos que antecederam a morte da estrela, em 1969, aos 47 anos, por overdose de barbitúricos.
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Irremediavelmente dependente das anfetaminas (para manter o peso) e barbitúricos (para contra-atacar o efeito excitante das anfetaminas) que desde a adolescência Louis B. Mayer, o chefão da MGM, mandava dar-lhe na boca, Judy Garland teve de aceitar o convite para uma temporada de shows em um clube noturno em Londres. Nos Estados Unidos, sua carreira estava em ruínas: por causa do comportamento errático, ela já não mais conseguia nenhum papel no cinema. Quando alguém mostrava interesse em contratá-la, eram as seguradoras que se opunham. Cheia de dívidas, sem casa para morar e obrigada a sustentar-se com uma rotina itinerante de apresentações muito semelhante àquela da sua infância — na qual, ironicamente, tinha de fazer-se acompanhar nas performances pelos dois filhos mais novos, Lorna e Joey Luft —, Judy estava prestes a perder a guarda das crianças para seu ex-empresário e ex-marido (o terceiro de cinco) Sidney Luft (Rufus Sewell). Liza Minnelli, a mais velha, filha do casamento com o cineasta Vincente Minnelli, estava já indo de vento em popa, mas tinha com a mãe um relacionamento mais fraterno que filial. Sem saída, Judy topou ganhar algum dinheiro na Inglaterra, onde sua popularidade seguia mais ou menos intacta — e lá o desequilíbrio atingiu seu auge em uma noite na qual, subindo ao palco embriagada e atrasada, a estrela foi bombardeada pela clientela do clube com os pãezinhos do couvert, bitucas, bebidas e até copos de vidro.
Em desempenho indicado — e favorito — ao Oscar, Renée Zellweger crava os altos e baixos do humor de Judy, sua energia e a capacidade quase automática de pôr o carisma no máximo diante da plateia, e também suas caras e bocas de diva. Baseado na peça musical O Fim do Arco-Íris, o filme, entretanto, troca muito da fantasia do texto original do dramaturgo Peter Quilter por personagens e episódios reais bem pesquisados, embora reforce o papel de figuras secundárias, como a assistente encarregada de pôr a estrela na linha durante a estada em Londres (muito bem interpretada por Jessie Buckley, uma atriz em forte ascensão), e invente outras, como o casal gay que se condói da solidão de Judy.
O que falta a essa parte do filme dirigido pelo inglês Rupert Goold são a tristeza profunda e a fragilidade em que a estrela vivia mergulhada; elas são mais enunciadas pelo roteiro do que sentidas pelo espectador. Nesse aspecto, os flashbacks em que a Judy adolescente (Darci Shaw) é cruel e sistematicamente desconstruída pelo terrível Louis B. Mayer (Richard Cordery) chegam mais perto de dar uma medida do seu desamparo e sujeição, que se repetiriam depois em seus casamentos (as cenas sugerem que o abuso perpetrado por Mayer era também físico, além de psicológico). Tudo, na vida dela, parece inevitável depois disso. Levada a crer que começara pelo fim do arco-íris, no proverbial pote de ouro, Judy terminou no outro extremo, sozinha e amarga.
Publicado em VEJA de 5 de fevereiro de 2020, edição nº 2672
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