‘Hunters’: Al Pacino diverte e desconcerta com caça a nazistas
Na trama, ele lidera uma liga de sobreviventes do Holocausto que rastreia criminosos de guerra incógnitos nos Estados Unidos
Os inimigos já descobriram a existência do grupo que se autointitula Caçadores, de forma que Meyer Offerman (Al Pacino) contratou uma brigada de segurança para a festa de casamento da filha de um de seus companheiros — a Kosher Nostra, um bando de rapazes judeus mal-encarados, armados com rifles Kalashnikov. Lá dentro, no salão, o jovem Jonah Heidelbaum (Logan Lerman) toma contato com suas origens: em um hebraico titubeante, os olhos rasos d’água, ele recita a oração preferida de sua avó — a quem caberia a honra, não fosse ela ter sido assassinada algumas semanas antes. Jonah nem terminou ainda quando um tumulto se forma com a entrada da Irmã Harriet (Kate Mulvany), que veio trazer um presente aos pais dos noivos (Carol Kane e Saul Rubinek): o homem que trinta anos antes, no desembarque no campo de extermínio de Auschwitz, matou com um tiro na cabeça o primogênito deles. No espaço de alguns minutos, Hunters (Estados Unidos, 2020), a série que acaba de estrear na Amazon, exemplifica assim a velocidade com que é capaz de ricochetear para lá e para cá, da sátira ao drama e deste para a violência intensa, ora realista, ora cartunesca. É uma mistura que aqui tem o impacto (ou o desconforto) redobrado pelo tema: a caçada que, em 1977, uma liga de sobreviventes do Holocausto empreende aos nazistas que, desde o pós-guerra, vivem nos Estados Unidos sob novas identidades e com grandes regalias, ocupando postos científicos de destaque e cargos políticos.
Não se trata, porém, de uma caçada com vistas à justiça como a promovida por Simon Wiesenthal, que se dedicou a localizar criminosos de guerra como Adolf Eichmann para levá-los aos tribunais de Israel: os Caçadores torturam e matam, um por um, os nazistas que entram em sua lista. Em um encontro com o verídico Wiesenthal (interpretado aqui por Judd Hirsch), o fictício Offerman diz que os nazistas incógnitos em território americano são muitos, estão em contato uns com os outros e pretendem finalmente realizar o projeto no qual Hitler falhou; não há tempo para júris e juízes, argumenta Offerman, a quem Al Pacino empresta os seus maneirismos mais saborosos.
Não há dúvida do que Hunters quer falar — da ascensão da extrema direita, do clima de leniência e mesmo de encorajamento que hoje beneficia o ódio e o racismo, do ressurgimento do antissemitismo, da infiltração dos ideólogos do neofascismo nos governos e instituições. É o mesmo estado de coisas que motivou o neozelandês Taika Waititi a fazer Jojo Rabbit, por exemplo, e que impulsiona uma onda de filmes sobre o tema (leia aqui). Hunters, porém, é bem menos reflexão histórica que uma fantasia avivada pela ambientação colorida dos anos 70 e pelo culto aos quadrinhos de super-heróis que excitam a imaginação do jovem Jonah. Às vezes descaradamente divertida, outras vezes surpreendentemente comovente, a série não raro erra feio o alvo também, pesando a mão no sentimentalismo ou exagerando as obviedades (“Ir à Lua valeu tantas vidas?”, pergunta Offerman retoricamente, e sem nenhuma imaginação, a Wernher von Braun, o gênio da propulsão a jato que trabalhou para o nazismo e depois chefiou projetos importantes da Nasa). Só o que não se pode dizer de Hunters é que seja monótona, ou previsível.
David Weil, o criador da série (que tem entre seus produtores o Jordan Peele de Corra! e Nós), descreve a leva de dez episódios como uma carta de amor à sua avó materna, uma polonesa que passou por campos como Auschwitz e Bergen-Belsen e povoou a infância do neto com seus relatos. A memória é o pilar da identidade judaica e sua forma mais refinada de resistência — e, por isso mesmo, guardiões dessa memória, como o Museu de Auschwitz, têm criticado Hunters por invenções como um jogo de xadrez humano, em que cada “peça” capturada é um prisioneiro judeu assassinado: no entender do museu, caricaturas como essa são combustível para o negacionismo. O que também é fato, porém, é que, passadas oito décadas do início da II Guerra, as tintas simbólicas do genocídio ficam cada vez mais carregadas — um aspecto do qual Hunters tira às vezes muita força, e em outras ocasiões transgride de maneira desastrosa.
Publicado em VEJA de 4 de março de 2020, edição nº 2676