Destaque no Emmy, ‘Succession’ preenche lacuna de ‘Game of Thrones’ na HBO
Com dezoito indicações, a excepcional série prova em sua segunda temporada que é tragédia com “T” maiúsculo
Ainda que tudo que veio antes já não tivesse sido espetacular, valeria a pena atravessar as vinte horas de Succession apenas para chegar à cena final da segunda temporada. Em um momento antológico, o impasse perpétuo entre Logan Roy (Brian Cox) e seu filho Kendall (Jeremy Strong) supera seu ponto de ebulição para atingir o grau de fissão — e assim, paradoxalmente, esses dois personagens se veem o mais perto que jamais estiveram de um momento de amor pleno: na série da HBO produzida por Adam McKay e Will Ferrell, a disposição de se devorarem uns aos outros é que define, para os Roy, quão autêntico é o seu parentesco. Todos levam o sobrenome do patriarca Logan, mas ele só reconhece como seus, na carne e na alma, os filhos capazes de reproduzir as qualidades sobre as quais ele construiu seu império bilionário de mídia — a frieza, a indiferença, o cálculo, a implacabilidade, a habilidade de manipular. Connor (Alan Ruck), filho do primeiro casamento de Logan, há muito foi condenado a viver sem aprovação alguma; é um fraco e um fracassado. Shiv (Sarah Snook) e Roman (Kieran Culkin), os mais novos, não têm limites na amoralidade nem na competitividade, e ora um, ora outro usufruem a complacência paterna. E aí há Kendall. Na arquitetura primordial de Succession, Logan é o rei Lear de William Shakespeare e Kendall é Cordelia, a filha fiel e que ama verdadeiramente — e que por isso, por dedicar ao pai um sentimento que não consta de seu repertório, é por ele desrespeitada, desonrada e destituída. No desfecho da segunda temporada, traição e sacrifício se confundem de maneiras atordoantes, deixando um gancho explosivo para a próxima leva de episódios (cuja data de estreia infelizmente continua incerta, em razão da pandemia).
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Concorrendo a dezoito prêmios no Primetime Emmy, o Oscar da TV americana, Succession ocupa em mais de um sentido o lugar deixado vago por Game of Thrones: não apenas na quantidade e na abrangência de indicações — treze a mais do que obteve no ano passado —, como nas possibilidades oferecidas pelas relações familiares pérfidas dos extraordinariamente ricos e poderosos. Se os Lannister de GoT moldavam seu mundo por meio da influência e da potência militar, os Roy o fazem com a ferramenta por excelência deste século, as comunicações.
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Com um quê do desenho corporativo da Disney, mas claramente inspirados no clã do magnata Rupert Murdoch, do conglomerado Fox e News Corp (que na semana passada viveu mais uma de suas disputas intestinas, com a demissão do filho James, suplantado pelo irmão Lachlan), os Roy são flagrados em um instante típico da vida das empresas familiares: o momento em que o fundador dá os primeiros sinais de fraqueza e, sentindo cheiro de sangue na água, seus descendentes começam a rondar a presa. A qual consiste aqui não só de poder e fortuna imensuráveis, mas inclui ainda um componente psicológico desejado com avidez: a necessidade freudiana de matar o pai (apenas metaforicamente, espera-se) para adquirir e exercer uma identidade própria.
Apesar dos problemas de saúde, da cobiça dos filhos e das evidências de que seu modo de conduzir os negócios está ficando ultrapassado, Logan está ainda — como Lear — aferrado ao poder, e joga com seu reino para se reafirmar como o ocupante indisputável do trono. Por ser seu herdeiro presumido, Kendall é submetido pelo pai a um martírio público e íntimo. É primeiro desautorizado e removido, depois triturado psiquicamente até se tornar uma sombra e, por fim, tratado com uma pena que Logan jamais dedicou a nenhuma outra pessoa — o prego no seu caixão. Esse enterro prematuro é o que desperta Kendall de sua apatia. Menos porque deseje usurpar a coroa, e muito mais porque compreende que o único gesto capaz de tranquilizar o pai é provar-se um sucessor à altura na determinação de dissimular, trair, manobrar e afastar. Assim, Kendall, o filho que já se destruiu nas drogas para suportar uma farsa — a de que pode ser tão cruel quanto o restante da família —, aprisiona-se agora na desumanidade para libertar o pai e honrá-lo.
Desde Família Soprano — e lá se vão treze anos que ela saiu do ar — uma série não se impunha de maneira tão decidida a missão de fazer tragédia com “T” maiúsculo. Não por coincidência, Jesse Armstrong, criador e roteirista-chefe de Succession, é um veterano da TV inglesa, em cujo DNA invariavelmente há fragmentos — ou sequências inteiras — do genoma do drama clássico. Mas, por si só, um roteiro superlativo não basta em um programa nesses moldes; é preciso ter atores capazes de compreender que cada personagem tem de atingir uma dimensão atávica, comum a toda a humanidade. Só há atores soberbos em cena em Succession (a árabe-israelense Hiam Abbas, aliás, merece menção honrosa no papel fugidio de Marcia, a terceira mulher de Logan), mas nenhum mais do que Jeremy Strong. Formado na universidade americana Yale e também na Academia Real de Arte Dramática britânica, Strong sustenta um desempenho avassalador, ao qual não seria exagero creditar a grandeza de Succession. O rei Lear dá nome à peça de Shakespeare — mas é o sofrimento de Cordélia que a torna trágica.
Publicado em VEJA de 12 de agosto de 2020, edição nº 2699
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