“Corrente do Mal”, como é bom sentir aquele mal-estar
Adoro filme de terror porque adoro sentir medo no cinema – aquele mal-estar, aquela perturbação, o calafrio, a boca seca.
Mas o medo é mais pessoal ainda do que o senso de humor: slasher movies na linha O Albergue funcionam para um monte de gente, mas definitivamente não funcionam para mim. Espíritos vingativos ao estilo de Sobrenatural? Nada, nem um arrepio. Já a presença do mal – mas aquele mal ancestral, invencível –, como em O Exorcista? Me agarro em quem estiver na poltrona ao lado. Aquela sensação de que a ordem natural das coisas foi alterada e não há como restabelecê-la, como em Os Outros, ou em A Bruxa de Blair? Sinto até tontura de tanto medo. Por isso mesmo vou contar o mínimo possível de Corrente do Mal: acho que é um desses filmes que merecem ser descobertos pelo espectador, a sós, dentro do cinema, no escuro.
A ótima Maika Monroe é Jay, que “contrai” uma aflição muito singular de um rapaz com quem transa: algo que passa a persegui-la sempre, metodicamente, sem descanso, na forma de uma pessoa qualquer que vem andando em direção a ela. Só a vítima da perseguição enxerga o perseguidor; para todas as outras pessoas a volta dela, a ameaça é invisível. Mas, pelo prólogo matador do filme, sabe-se que a ameaça é real, e terrível. Jay sabe também que pode transferir a perseguição para outra vítima: basta fazer sexo com ela. Mas ela hesita, porque isso equivaleria a condenar um inocente da mesma forma como ela foi condenada.
Este é só o segundo filme de David Robert Mitchell (o primeiro foi The Myth of the American Sleepover), mas garanto que não vou perder o terceiro: Mitchell não só é um diretor preparado e competente, com evidente cultura visual e cinematográfica, como tem um dom inato para entender que o medo está no intangível, no indefinível. Repare nos planos abertos, ultracompostos, em widescreen; no uso que ele faz do seu cenário, a Detroit arrasada pela falência econômica; no silêncio e no comedimento – este é um terrror em que ninguém grita e nem sequer fala alto; na solidão dos personagens; na habilidade com que ele evita qualquer referência ao tempo em que a história se passa (agora? na década de 70? impossível saber). Repare, sobretudo, na maneira como ele cria insegurança em vez de dar sustos. “Boooo!” qualquer um sabe fazer. Isto aqui é outra coisa, muito melhor.
Leia a seguir a resenha completa:
Só na imaginação
Poucos sustos, muita ansiedade: o espetacular Corrente do Mal mostra que o verdadeiro terror está no que não se vê
É dura a vida do fã de terror: ele passa filme após filme – e como se fazem filmes de terror – sentindo tédio em vez de medo, ou tomando sustos bestas que envolvem só a parte reptiliana do cérebro, ou então se indignando com o fato de alguém achar que ele pode levar a sério aqueles fantasmas e entidades comprados no saldão de computação gráfica. E, no meio desse martírio, às vezes se encontra uma exceção como Corrente do Mal. Mal-estar, desconforto e aquele arrepio frio que às vezes percorre a nuca é o que o diretor David Robert Mitchell oferece aqui, usando de uma deliberação e de um autocontrole que não são apenas a marca da competência, mas de um dom genuíno. Quase não há sustos em Corrente do Mal. Há apenas a inexorabilidade do mal, do pesadelo, da ameaça que não se identifica nem tem propósito outro além de ser o que é: mal, pesadelo, ameaça.
No prólogo de Corrente do Mal, uma garota foge de algo que não está lá. Correndo pela rua, e depois dirigindo noite adentro, ela olha para trás o tempo todo; ela, ao menos, não tem dúvida de que aquilo que a apavora está a um passo de alcançá-la. Na beira de um dos imensos lagos de Michigan, afinal, ela desiste: não há mais para onde seguir. No amanhecer, ela está lá ainda – morta, um esgar no rosto, as articulações fixadas em ângulos grotescos. Essa mesma ameaça indefinida entra na vida de Jay (Maika Monroe, um talento verdadeiro) na noite em que ela faz sexo pela primeira vez, em um prédio abandonado, com um rapaz com quem anda saindo: findo o clímax, ele amarra Jay a uma cadeira, vira-a de frente para a penumbra do terreno baldio e mostra a ela o que a espera – uma mulher que vem em sua direção a passo lento mas constante, alheia a tudo e concentrada apenas no seu alvo. Nem sempre será assim, diz o rapaz. A figura – que só a presa (e o espectador) é capaz de ver – pode ser de homem ou mulher, pode ser de velho, jovem, ou criança. Mas virá o tempo todo, e não vai desistir até tê-la aniquilado. A não ser que Jay faça o que ele fez e dê a ela uma nova presa – ou seja, que faça sexo com outra pessoa e transfira assim para ela o fado.
O assassino que, apesar do passo inalterado, está sempre encostado à sua vítima, é uma figura clássica do terror e também do suspense. Mas poucas vezes ela terá sido usada com tanta eficácia quanto por Mitchell: nos planos abertos e simétricos com que ele fotografa os subúrbios de Detroit e os distende no formato widescreen, elementos imprevistos entram em cena ao fundo ou pelos cantos da tela antes que os personagens possam detectá-los. Jay e seus amigos, sem adultos presentes em sua vida de qualquer maneira substantiva, administram sozinhos sua insegurança, o pavor, as dúvidas morais – ainda que dois rapazes se ofereçam para fazer sexo com Jay e chamar para si a perseguição, nem Jay consegue convencer-se de que seria justo fazê-lo nem tem certeza de eles acreditam na ameaça que ela descreve; talvez seja o sexo, simplesmente, que eles desejam. Há aí, claro, uma tinta alegórica sobre as doenças que se transmitem pelo sexo e sobre a vergonha que acompanha o desejo sexual. Mas é a solidão o grande tema de Corrente do Mal: as ruas vazias da Detroit fustigada pela falência econômica, a sensação de enlouquecimento dos que veem aquilo que os outros não enxergam, o peso insuportável de decidir sobre a própria vida e a de outros.
Nessa politização do horror, assim como no estilo visual e na trilha retrô de sintetizador, Corrente do Mal é uma homenagem assumida a John Carpenter, o mestre de clássicos B dos anos 70 e 80 como Assalto à 13ª DP, Halloween, A Bruma Assassina, Fuga de Nova York e Enigma do Outro Mundo. Mas é sobretudo um tributo à essência do terror, que alguns cineastas tentam preservar a despeito da mediocrização do gênero: o verdadeiro medo não está no que se mostra, tampouco em imaginar ameaças inéditas. Está em tudo que é mais antigo: na escuridão, nas sombras, no que não se vê ou que no que se pensa ter visto. Não há nada que um time de efeitos especiais seja capaz de criar que a imaginação daquele espectador ilhado em sua poltrona, no escuro, não possa conjurar em muito mais detalhe, e com potência incomparavelmente maior.
Isabela Boscov Publicado originalmente na revista VEJA no dia 26/08/2015 Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A © Abril Comunicações S.A., 2015 |
Trailer
Corrente do Mal
(It Follows)
Estados Unidos, 2014
Direção: David Robert Mitchell
Com Maika Monroe, Keir Gilchrist, Lili Sepe, Daniel Zovatto, Olivia Luccardi
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