Apocalíptico e desintegrado
Com seu épico maia Apocalypto, Mel Gibson mostra que sabe filmar – mas não controlar as suas obsessões
Em Apocalypto, o primeiro – e provavelmente o último – épico maia da história do cinema, um vilarejo de inocentes é arrasado por uma tribo mais avançada. Mulheres são violentadas, velhos são assassinados, crianças são largadas à própria sorte. Os homens são conduzidos sob tortura até um centro de devassidão: um conjunto de pirâmides, no meio da selva, onde um sacerdote arranca o coração de escravo atrás de escravo, jogando as cabeças cortadas escadaria abaixo e alimentando o êxtase da multidão. Por uma casualidade, ou por intervenção divina, um dos homens marcados para o sacrifício, o jovem Jaguar Paw (ou “Pata de Jaguar”), é poupado no último instante. Durante sua fuga, ele cumprirá, sem saber, os vários passos de uma profecia que anuncia a derrota de seus algozes para outra civilização. Mais, até: Jaguar Paw é que os levará ao encontro desse novo elemento. Apocalypto é parte reconstituição da Mesoamérica do século XV, apoiada em fontes até respeitáveis, e parte fruto da imaginação desabrida de Mel Gibson, seu autor e realizador. Uma salada, enfim. Entretanto, visto pelo prisma das obsessões cada vez mais notórias de Gibson, o filme é de uma coerência inabalável. Da mesma forma que Coração Valente e A Paixão de Cristo, esta aventura se ocupa acima de tudo das infinitas possibilidades de mutilação, dor e penitência contidas no corpo humano. Por extensão, ela trata também dos significados que o martírio tem para o catolicismo ultra-ortodoxo de Gibson: o terror do pecado (aqui, lato sensu) e a ânsia pela expiação.
Em julho passado, num acesso muito público de anti-semitismo, Mel Gibson foi parado em Malibu sob suspeita de dirigir embriagado. “Malditos judeus. Vocês são responsáveis por todas as guerras no mundo”, berrou ele para o policial, segundo testemunhos – os quais imediatamente começaram a ricochetear na internet. Gibson, que tem dificuldades conhecidas com o álcool, a homofobia e o relacionamento em pé de igualdade entre homens e mulheres, não é um novato em crises de imagem. Mas o episódio de Malibu superou qualquer outro de sua experiência, colocando-o no topo da lista de indesejáveis de Hollywood, da qual nem suas profusas desculpas e pedidos de “ajuda” têm se mostrado capazes de removê-lo. De certa forma, porém, a débâcle anti-semita de Gibson é o seguimento lógico para a polêmica de A Paixão de Cristo e a publicidade adequada para Apocalypto. Pelo que se pode depreender do novo filme, o estado de graça, para o diretor, é algo ainda mais frágil do que para a maioria das pessoas – e a queda em desgraça, não só mais completa como também mais prazerosa. Na abertura, que mostra o éden em que vivem Jaguar Paw (interpretado pelo índio americano Rudy Youngblood) e seu clã, o filme titubeia e não engrena; assim que se inicia a via-crúcis do protagonista, Apocalypto cresce e se desenvolve, como narrativa e como demonstração de apuro técnico. É de dar medo pensar que a mente de Gibson possa conter pesadelos tão ornamentados como o da cidade dos sacrifícios, em que até o figurino provoca mal-estar. E, ao mesmo tempo, causa certa admiração que o diretor não tenha pudor em conjurar assim suas visões supersticiosas do paganismo.
É provável que Gibson preferisse ter chamado atenção não para suas obsessões, mas para os cuidados que dispensou a Apocalypto – as locações no sul do México, os atores e figurantes recrutados entre a população indígena local, os diálogos em maia yucatec (idioma ainda usado por cerca de 700.000 habitantes da América Central e parente próximo do maia que, acredita-se, era falado no período pré-colombiano), os detalhes pesquisados em estudos como o 1491, de Charles C. Mann, e em relatos de missionários espanhóis que desembarcaram na região junto com os primeiros descobridores. Numa tentativa canhestra de atrair para seu filme o favor dos liberais de Hollywood, que desde A Paixão de Cristo lhe deram as costas, Gibson chegou a declarar que a política de incitamento ao pânico praticada pela tribo dominante de Apocalypto “faz lembrar a de George W. Bush e seu pessoal”. Ainda que o paralelo fosse capaz de se sustentar, não é esse o ponto. A única coisa que está em jogo no filme, e que dá liga a ele, é a natureza patológica da criatividade de Gibson. Assistindo a Apocalypto, freqüentemente se tem vontade de desviar os olhos da tela – não apenas em razão da violência extrema, mas por causa da sensação de que o diretor está expondo algo íntimo demais para ser dividido com completos estranhos. Gibson talvez não seja um sádico, como se julgava, mas um autêntico masoquista.
Isabela Boscov
Publicado originalmente na revista VEJA no dia 24/01/2007
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Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
© Abril Comunicações S.A., 2007
APOCALYPTO
Estados Unidos, 2016
Direção: Mel Gibson
Com Rudy Youngblood, Dália Hernandez, Jonathan Brewer, Morris Birdyellowhead, Espiridion Acosta Cache