‘1917’ lança a plateia no desespero da guerra, sem pausa
Filmado como duas sequências contínuas em tempo real, o longa-metragem do diretor Sam Mendes é uma façanha técnica em escala inédita
Travada na lama das trincheiras, entre fome, doença e ratos e sob o pavor dos ataques com gases letais e armas que pela primeira vez na história eram usadas, a I Guerra Mundial foi a mais cruel de todas as guerras — um pesadelo que se estendeu durante 52 meses, entre 1914 e 1918, e do qual pelo menos 10 milhões de soldados nunca acordaram, largados em uma morte anônima nas tenebrosas “terras de ninguém”, como eram chamadas as zonas de morticínio entre duas trincheiras inimigas. A “guerra para pôr fim a todas as guerras”, como se anunciava, na verdade terminou trazendo dentro de si o germe de um novo começo: uma derrota punitiva para a Alemanha, que, desmoralizada e flagelada por uma terrível crise econômica, em 1939 se ergueu para mais um conflito global. Retratada em filmes como o ainda hoje tecnicamente assombroso Sem Novidade no Front, de 1930, e o revolucionário Glória Feita de Sangue, que Stanley Kubrick lançou em 1957, a Grande Guerra, no entanto, ocupa no cinema um distante segundo plano em relação à II Guerra Mundial. Aquilo que lhe falta em amostragem ela recupera agora em intensidade, com o mesmerizante 1917 (Inglaterra/Estados Unidos, 2019), já em cartaz no país, no qual o diretor Sam Mendes faz a plateia caminhar passo a passo com dois soldados — e arrastar-se, enlamear-se, esconder-se e fugir — para mergulhá-la, assim, em uma experiência todo-terreno no front francês.
Dizer que a câmera segue os protagonistas mal começa a explicar a concepção de Mendes para 1917. Todos os 119 minutos do filme são constituídos de dois únicos planos aparentemente contínuos que recriam, em tempo real, a jornada desesperada dos jovens Blake (Dean-Charles Chapman) e Schofield (George MacKay), a partir do instante em que eles são tirados de um raro repouso numa campina para ouvir de um general suas ordens: sair da trincheira britânica, cruzar a terra de ninguém até a trincheira que os alemães acabam de abandonar, embrenhar-se por ela até ganhar o campo e então, expostos, atravessar fazendas, rios e cidades em ruínas para chegar antes do amanhecer ao local em que um regimento inglês de 1 600 homens está prestes a cair em uma emboscada. Blake foi escolhido porque tem um irmão no regimento fadado ao massacre; não faltará a ele motivação. Schofield vai de roldão; estava ao lado do amigo na hora. Veterano da Batalha do Somme, de 1916, ele sobreviveu a horrores que Blake ainda desconhece. Enquanto o companheiro se atira na empreitada, Schofield tenta dar a ela uma medida de cautela e de planejamento.
Trata-se de uma destilação virtuosística do fundamento dramatúrgico de definir personagens tão somente por meio de suas ações, à qual os dois jovens atores, assim como o restante do elenco, correspondem de maneira admirável. Como Blake, Dean-Charles Chapman, que foi o Tommen de Game of Thrones, é um misto cativante de leveza, coragem e ingenuidade. E, como Schofield, George MacKay, que interpretou o filho de Viggo Mortensen em Capitão Fantástico, é brilhante — um exemplo de como a emoção pode ao mesmo tempo ser contida, sustentada e modulada em um desempenho física e psicologicamente extenuante que, por razões inexplicáveis, não foi indicado ao Oscar. Em participações incidentais, o restante do elenco não é menos marcante: inclui Colin Firth, Benedict Cumberbatch e Richard Madden — além de Mark Strong e Andrew Scott, estupendos em suas cenas breves.
Muito da eficácia de 1917 está na concisão que Sam Mendes, antes um cineasta mais dado ao grandioso, aprendeu a praticar desde o excelente 007 — Operação Skyfall. Aqui, ele exclui o contexto histórico (1917 foi o ano em que os Estados Unidos entraram na guerra, em que a Rússia mobilizada pela revolução comunista saiu dela e em que os alemães intensificaram sua ofensiva). Também não alude ao atual reavivamento do nacionalismo e do fascismo — uma conjunção similar àquela na qual a I Guerra eclodiu. Com o foco fechado em uma missão e dois personagens, ele faz com que esse clima se forme sozinho na imaginação do espectador: é de um mundo em ruínas, reais e metafóricas, que ele fala. Em particular, de um mundo em que não há volta, de nenhum ponto do caminho.
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Fundindo o literal e o sugerido, Mendes e Krysty Wilson-Cairns escreveram um roteiro singular, em que Blake e Schofield só podem se mover para a frente, sem jamais dar um passo para trás. Para cumprir esse intuito e criar a ilusão de que a ação se desenrola em tempo real, Mendes idealizou um dos processos mais incomuns já descritos. Primeiro, levou os atores para ensaiar nos campos onde seriam construídos os cenários, acompanhados por toda a equipe: da cronometragem de cada diálogo e da interação entre o diretor de fotografia Roger Deakins, os desenhistas de produção, os supervisores de roteiro e os especialistas em efeitos é que saíam as especificações técnicas — qual o comprimento de cada trecho de trincheira, campo ou rua, a posição de cada escombro ou obstáculo, o local em que cada bomba ou morteiro seria detonado, o percurso que cada luz deveria fazer.
Durante cinco meses, o processo se repetiu, incorporando uma quantidade cada vez maior de elementos, até que a filmagem pudesse começar. A coreografia ensaiada pela equipe chega a ser mais intrincada que a dos atores: com frequência, a câmera tinha de passar sem interrupção da traseira de um jipe para as mãos de um operador, dali para um guindaste e então deste para um fio suspenso, enquanto os técnicos corriam para lá e para cá, fugindo das lentes. Os planos ultracomplexos, de vários minutos cada um, foram então unidos por truques invisíveis (por exemplo, quando os personagens entram da luz do dia para um interior escuro), até ter-se fidelidade absoluta à sensação de ação ininterrupta. Ainda que a façanha técnica não seja inédita — filmes pioneiros como Festim Diabólico e Arca Russa, e recentes, como O Regresso, também levam o plano-sequência ao limite —, a escala em que é realizada aqui não tem precedentes. Mas não é ela o mais belo em 1917: é a maneira como Mendes submerge o espectador não no seu virtuosismo, mas no sofrimento de dois rapazes apanhados pela história em um de seus piores momentos.
Publicado em VEJA de 29 de janeiro de 2020, edição nº 2671
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