Um tiro no meio do concerto
Uma reflexão rápida, a partir da frase famosa de Stendhal, sobre as relações complicadas entre arte e política. E a declaração de princípios deste novo blog
“Política, numa obra literária, é um tiro de pistola no meio de um concerto, algo grosseiro, do qual, entretanto, não é possível desviar a atenção.” A frase famosa aparece no quarto final de A Cartuxa de Parma, romanção que Stendhal escreveu em milagrosos 53 dias de 1838. Não se deve lê-la com ingenuidade: a tirada carrega certa dissimulação irônica. Um romance cujos episódios centrais estão relacionados às guerras napoleônicas – das quais o autor participou – terá, obrigatoriamente, uma razoável dose de política, o que se pode confirmar graças às facilidades da leitura eletrônica: uma busca rápida no texto on-line informa que a citação célebre corresponde à 26ª das 31 vezes em que a palavra “política” figura, como substantivo ou adjetivo, em A Cartuxa de Parma. Como bem observa o crítico americano Irving Howe em um estudo dedicado a grandes romances políticos, os “concertos” de Stendhal são “invariavelmente interrompidos por explosões de armas de fogo”.
Howe lamenta ainda que Stendhal tenha sido demasiado sucinto nessa consideração sobre literatura e política. O que acontece com a música, pergunta o crítico, depois do tiro? Eu perguntaria ainda pelo destino da bala: o dano que uma pistola pode causar, afinal, não se limita à interrupção de uma sinfonia. O adjetivo “grosseiro”, aliás, soa como um eufemismo. Pouco mais de um quarto de século depois de A Cartuxa de Parma, Abraham Lincoln foi morto por um tiro do ator John Wilkes Booth em um teatro de Washington. Caberia lamentar então a “grosseria” do assassino que interrompeu uma peça teatral?
No entanto, por força do contraste, o adjetivo eufemístico torna a analogia inusitada de Stendhal ainda mais eloquente. O escritor francês, afinal, não comparou a política aos ruídos menos extraordinários mas ainda assim perturbadores que se ouvem em salas de concerto: conversas, gritos, risadas (Stendhal teve a felicidade de jamais ouvir a grosseria mais habitual do século XXI: o celular). A política é um tiro: não só barulhenta, mas ameaçadora, brutal, violenta. O romance, gênero cuja ambição é abarcar toda a grosseira vulgaridade da vida, não pode deixar a política de fora; sua música, porém, luta para se fazer ouvir acima do estampido. (Incidentalmente, é curioso lembrar que uma derrota de Napoleão inspiraria, anos depois da morte de Stendhal, a Abertura 1812 – popular peça musical de Tchaikovsky que incorpora, entre suas tonitruâncias, tiros não de pistola, mas de canhão.)
É uma lição preciosa para se guardar em dias nos quais a palavra de ordem é a politização de todas as coisas – não só da literatura, da música, da arte, mas também do carro e da bicicleta, das roupas, do comercial de cerveja, da decoração de festa infantil (e do corpo, e do sexo, sim, sobretudo do sexo!). Há, ninguém ignora, um sentido lato da palavra que permite qualificar qualquer interação humana, por mais comezinha que seja, de “política”. Mas o imperativo da politização não se contenta com essas generalidadades: ele exige que se tomem posições quando se toma um cafezinho e que se leiam manifestos quando se lê um poema. No debate público recente do Brasil, o buraco da bala está ainda mais abaixo: o critério último para avaliar qualquer coisa – um café ou um soneto – não são princípios, ideias, postulados da alta política, mas a adesão a uma seita, ou a conformidade ao Partido.
Deixo só um exemplo para tornar a conversa menos abstrata: na década de 70, o exilado Ferreira Gullar era o poeta mais prezado pela esquerda, enquanto os poetas concretos eram tidos como “formalistas” – alienados e alinhados, no seu entusiamo pelas influências da tecnologia e dos meios de comunicação de massa, ao “horizonte rebaixado e inglório do capital vitorioso” (a expressão foi empregada, há poucos anos, por um figurão da crítica literária marxista em um ensaio sobre um medalhão da MPB; ela não seria, porém, estranha nas décadas de 60 e 70). Nos dias de agonia do governo passado, porém, testemunhamos uma esquisita troca: o concreto Augusto de Campos, apoiador da mandatária impedida, ergueu-se como o poeta maior no panteão militante, enquanto Gullar, crítico do governo afastado, convertia-se na besta fera do elitismo reacionário. Nelson Ascher falou dessa inversão em um texto de homenagem a Gullar, publicado em VEJA quando da morte do poeta maranhense – e pontuou o fato essencial: aqueles que avaliam Augusto e Gullar pelas posições políticas conjunturais dos dois escritores não têm verdadeiro interesse por Viva Vaia ou por Poema Sujo.
Este blog que ora começa suas atividades é dedicado, como se lê acima, à crítica cultural e à cultura da crítica. Os temas que se abrem são quase ilimitados: arte, literatura, cinema, música, a dinâmica sempre cambiante da cultura de um tempo que talvez seja tão áspero e intratável mas não tão belo quanto o cacto do poema de Manuel Bandeira. Sim, os tiros são cada vez mais altos e frequentes, e o blogueiro não é surdo: vai falar também da barulheira, incluindo-se aí o bla-bla-bla incessante das redes sociais. Mas Intervenção pretende ouvir, antes de tudo, a música que a artilharia deseja abafar. A noção antiquada de que a cultura ainda tenha seu espaço autônomo – de que as músicas que nos comovem, as pinturas que nos transfiguram e os romances que nos definem sobrevivem em algum lugar não totalmente contaminado pela política mais mesquinha – essa noção talvez seja a mais ingênua das ilusões, mas é a ilusão que nos resta. Somos feitos da matéria dos sonhos, como diria o célebre mago (não Harry Potter: aquele outro, mais velho e mais antigo).
O leitor está convidado a se acomodar ao lado do blogueiro no grande teatro da cultura. Encostado à nuca, o cano da pistola incomoda, mas a cortina já se abre. Assistamos ao concerto.