Política e arte, de novo: o romantismo de Wagner Moura
O ator que acaba de se engajar em um "projeto de Brasil" expôs suas ideias sobre a "participação" do artista em um artigo um tanto confuso
O abaixo-assinado tornou-se compulsão patológica em certos meios intelectuais. Haverá, imagino, muito figurão das artes e da academia que sofra crises de abstinência nas raras ocasiões em que não encontre na praça um texto coletivo justiceiro no qual possa apor sua garatuja. O mais recente abaixo-assinado de sociólogos, economistas, artistas, escritores anuncia a formação de um grupo que adota o modesto nome “Projeto Brasil Nação”. Anunciam os signatários que o atual governo – ilegítimo e reacionário – peca por não ter o tal “projeto de Brasil”. Nosso país é um lugar abençoado, que só precisa de projeto para deslanchar. Todo o resto nós temos, segundo informa o manifesto do grupo: “música, poesia, ciência, cinema, literatura, arte, esporte”. Também temos, acrescento, palmeira e sabiá. E – mais um acréscimo meu – saúva, muita saúva. E ainda uma “crise sem precedentes”, mas isso já não sou eu que digo: a expressão consta do abaixo-assinado. A responsabilidade primeira por essa crise, embora bem conhecida e documentada, é um ponto cego do texto. Imenso ponto cego, tão imenso que se torna impreciso chamá-lo de “ponto”.
Mas o meu ponto é outro. O abaixo-assinado, confesso, é apenas um pretexto para chegar a um pré-texto: o artigo que Wagner Moura, um dos signatários, assinou sozinho na Folha de S. Paulo em março, com o título “Quem tem medo de artista?”. Pensei em aludir a esse texto no post inaugural de Intervenção. Mas, no meio de toda a conversa sobre Stendhal e o tiro no meio do concerto, não encontrei onde encaixar as considerações do ator de Tropa de Elite. Deixei passar. Vendo agora que Wagner Moura incorporou-se à turma que propõe um Plano Quinquenal para o Brasil, achei que era hora de voltar ao seu artigo, no qual ele diz coisas verdadeiramente assombrosas sobre arte e política.
Wagner Moura é um grande ator, o que todos podem constatar em filmes tão diversos quanto O Homem do Futuro e Praia do Futuro. Parece ser tão sério e honesto nas suas convicções políticas (das quais não compartilho) quanto é, digamos, na sua paixão pela música de Renato Russo (que tampouco compartilho). Por isso compreendo perfeitamente sua bronca com certas opiniões correntes e vulgares sobre artistas que mostram empenho político. Virou cacoete de certa direita atacar qualquer ator, escritor, compositor que externe opiniões de esquerda valendo-se de uma carta fácil: “esse vagabundo vive de Lei Rouanet”. No espírito da tão falada “pós-verdade”, muitas vezes nem se verifica se a pessoa criticada de fato recorre à lei de incentivo via renúncia fiscal (que, vale notar, não é invenção do PT). É uma “estupidez”, diz Moura, com acerto.
Só que, para se opor à estupidez, o articulista resolveu recorrer a uma tolice. Não lhe basta dizer que o artista da velha esquerda tem, tanto quanto o filisteu da nova direita, direito a emitir suas opiniões em vídeos no YouTube ou páginas de opinião da imprensa. Escreve Wagner Moura: “Numa democracia saudável, artistas são parte fundamental de qualquer debate”. Engenheiros, padeiros e ascensoristas talvez também estejam convidados ao debate público na “democracia saudável”, mas não serão, presume-se, “fundamentais”. O autor parece acreditar que um artista, só por ser artista, tem certa compreensão superior da política, e que por isso desperta medo no status quo do “Brasil de Michel Temer”.
O texto se enreda em várias generalizações, simplificações e confusões conceituais. Afirma peremptoriamente que a “natureza da arte é política pura”; confunde arte e cultura; descobre nas obras de investigação histórico-sociológica de Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre “projetos sérios de Brasil” (o tal projeto nacional é um fetiche obsessivo, como se vê); e, no limite do risível, invoca Shakespeare, cujas ideias pessoais sobre governo, religião, sexualidade etc. são desconhecidas, para referendar “a participação de artistas na política” (a dimensão política de obras como Julio César e Macbeth é coisa bem diversa, e essa distinção não deveria ser tão complicada). Mas o problema maior está na idealização ingênua da figura do Artista como um transgressor temido pelo Poder. Como o autor é, ele mesmo, um artista, torna-se inevitável acusar a autoindulgência do artigo, pateticamente óbvia no passo em que Wagner Moura evoca os perseguidos pelo macarthismo nos Estados Unidos e pelo stalinismo na antiga União Soviética para em seguida concluir: “A galera incomoda”.
A galera? Se entendi direito, o autor-ator está conjurando uma fantasmática coletividade dos artistas de todos os tempos e lugares, que também o inclui. Todos incomodam o status quo. Que singelo modo de congratular a si mesmo: sem ter jamais vivido o horror do Gulag, Wagner Moura se coloca na companhia de Mandelstam; sem penar o olvido compulsório da lista negra – pelo contrário, o ator de Narcos trabalha muito e trabalha bem –, Wagner Moura se irmana a Trumbo. Ele relata, é verdade, um choque que teve com o poder do turno: o governo fez uma peça de propaganda para contestar o vídeo do Movimento dos Trabalhadores sem Teto em que Wagner Moura criticava a reforma da Previdência. Feio, sim. Mas, antes de ser um caso de “perseguição” a um artista, trata-se apenas de um vexame do governo Temer. Não é o único, nem o maior deles.
Em suma, o ator teve lá uma rusga ligeira com o governo e já se sente um Garcia Lorca, um Soljenítsin, um Reinaldo Arenas. Imagine o leitor um piloto de uma tranquila linha doméstica brasileira que, depois de passar por uma zona de turbulência um tanto mais forte entre Salvador e São Paulo, resolvesse se comparar aos aviadores da RAF que combateram na II Guerra Mundial. O paralelo talvez pareça forçado, mas permite expor a fragilidade maior nessa conversa de “galera que apronta todas”: meu hipotético piloto convenientemente esquece que a Luftwaffe também tinha aviadores. O mesmo se dá entre escritores, atores, pintores, compositores: ao lado de muitos artistas que de fato enfrentaram o poder, e sofreram por isso, há outros tantos que se acomodaram ao status quo, que serviram até às piores tiranias. A galera incomoda? Nem sempre. As relações entre arte e poder são demasiado variadas e complexas para caber no simpático coloquialismo de Wagner Moura. Tome-se o caso de Bertolt Brecht, que Moura cita no início do texto como bom exemplo de artista com “participação na política”: o dramaturgo alemão foi inimigo de um totalitarismo e amigo de outro. Resguardadas as numerosas e grandes diferenças, dá para dizer que o mesmo se verifica no Brasil atual: há artistas que se mostram dóceis com um governo e se tornam críticos ferozes do governo seguinte.
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A idealização do artista tem uma tradição longa e respeitável, pelo menos do romantismo para cá. Na exaltação que Wagner Moura faz à “galera que incomoda”, quase dá para ouvir, bem lá no fundo, Shelley proclamando que os poetas são os “legisladores ocultos não reconhecidos do mundo”. Mas isso não é nada demais: daria para dizer o mesmo da cançoneta tristonha sobre “sonhadores” que a bonitinha Emma Stone canta em La La Land (filme em que a “natureza política” da arte é, vamos combinar, bem ralinha). No musical americano e no texto do ator brasileiro, o ímpeto heroico do romantismo está soterrado por séculos de diluição e banalização.
A ideia do artista como pária, marginal, outsider, enfant terrible – esta é, creio, mais recente do que Shelley. Entra aí um caldo de cultura espesso e variado, no qual se cozinham Rimbaud, as vanguardas do início do século XX, a geração beat, a canção de protesto dos anos 60 e 70. Mais importante, porém, é observar uma nota particularmente brasileira e contemporânea que sobressai nesse amplo e vago pano de fundo de rebeldia desorientada. Diz Wagner Moura sobre o governo Temer: “Um governo atacar com mentiras um artista, em propaganda oficial, é, até onde sei, inédito na história, considerando inclusive o período da ditadura militar” (parece ficar implícito que mentir sobre um artista é mais grave de que mentir, digamos, sobre um jornalista, sobre um adversário político, sobre um caseiro). Sim, aí está o termo de comparação obrigatório do intelectual progressista: pior do que a ditadura! Transparece nesse ponto um desejo subterrâneo que não é exclusivo do autor. A esquerda que grita “golpe” guarda um mal disfarçado anseio por uma repressão que daria autoridade a suas bandeiras políticas, e tem saudade de uma censura que sancionaria a qualidade de seus livros, canções, filmes, artigos, abaixo-assinados. É o “fetiche da ditadura” de que falava meu amigo Mario Mendes no primeiríssimo post de #ProntoFalei.
Não são só os minoritários doidinhos que pediam “intervenção militar já” nas marchas do impeachment que sofrem da nostalgia de 1964.