Meu tio esquisito é aquele cara que todo mundo tem na família, e seu espírito se materializa de diversas formas. Ele é o melhor amigo do “Eremildo, o idiota”, personagem criado pelo jornalista Elio Gaspari. Sempre faz uns comentários esquisitos na noite de Natal. Ninguém tem paciência para ouvi-lo na festa de família por mais de cinco minutos. Seus palpites são toscos. Constantemente vem com um comentário machista: “Se eu pegasse aquela lá, dava uma canseira”. É invariavelmente homofóbico: “Aquele boiola”. Racista? “Eu, racista? Amo o Pelé.” Sua vida sexual era uma incógnita ou inexistente. Para a turma da classe, na escola, ele era invisível. Quando ganhou uma rede social, sua vida fez sentido. Ele ficou importante. Para avaliar se uma notícia era verdadeira ou não, bastava o cheiro. Votou no Bolsonaro, e seu espírito se materializou pelo Brasil inteiro, nas diversas classes sociais, nas praias, nos estádios lotados, até entre a turma dos topetes blindados da Avenida Europa, endereço chique de São Paulo.
A verdade é que esse tio esquisito sempre foi negligenciado pela arrogância dos tais “bem pensantes”. E faço aqui um mea-culpa. Integro esse clube de arrogantes. Por ter tido acesso à cultura, afeto e boas referências, nunca fui paciente com pessoas com conversa rasa. O fato é que tais pessoas se vingaram nas urnas pelo mundo inteiro. Os tios esquisitos se uniram. Os esquemas de fake news foram seu ópio, e nossos esforços para esclarecê-los não só foram inúteis como também uma deliciosa revanche dos negligenciados diante de nossa suposta superioridade intelectual. Todas as tentativas de combater uma mentira com lógica, ou um pensamento tosco com história ou ciência, só tiveram o efeito contrário. O tio esquisito ficou com raiva de nossa chatice, animou-se com sua inesperada importância. “Então você sempre me ignorou no Natal e agora quer me convencer a mudar meu voto? Tarde demais, agora quem manda sou eu.”
“Todas as tentativas de combater uma mentira com lógica só tiveram o efeito contrário”
Um livro? Não, obrigado, vou ali no canal de astrologia. Não passarão? Passaram. Ele não? Foi ele. E daí? As palavras de ordem, de desespero, os apelos foram uma série de gols contra. Talvez o tio esquisito seja machista, até porque nunca teve outra referência. Talvez ninguém tenha explicado a ele a relevância do feminismo, sem ser de forma combativa. Talvez seja homofóbico porque não soube lidar com os próprios desejos (para Freud, somos todos bissexuais). Talvez enxergue o mundo como casa-grande e senzala porque nasceu numa sociedade com esse desenho e nunca conseguiu ter a eureca da empatia nem se perceber um racista perverso.
O presidente Jair Bolsonaro está produzindo possivelmente uma das maiores tragédias fitossanitárias da história brasileira, um desastre anunciado para o ambiente, a caminho do holocausto indígena. Precisamos defender a luz e a sensatez. É hora de guerra. Precisamos pegar em armas. Calma. Nossa melhor arma, contudo, e o que nos distingue, são o afeto e o diálogo — a tolerância com o tio esquisito e a paciência para convencê-lo de que ideias razoáveis são sempre melhores.
Publicado em VEJA de 27 de maio de 2020, edição nº 2688