‘Sérgio’: O que é real no filme da Netflix sobre diplomata brasileiro
Wagner Moura interpreta Sérgio Vieira de Mello na produção que preza pela veracidade, mas opta por destacar o romance
O carismático e ousado diplomata carioca Sérgio Vieira de Mello, então Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, estava pronto para dar o próximo passo no relacionamento com a companheira Carolina Larriera e oficializar uma união civil, se afastando dos trabalhos de campo em missões diplomáticas da ONU. Chegou até a comprar duas passagens de avião para o Rio de Janeiro, datadas 42 dias de distância do trágico bombardeio no Hotel Canal, sede da ONU no Iraque, que o matou aos 54 anos de idade. Sérgio, filme baseado na história de Vieira de Mello, chegou recentemente à Netflix com o mesmo nome do documentário de 2009, ambos dirigidos pelo americano Greg Baker e inspirados na biografia do diplomata O Homem que Queria Salvar o Mundo, da historiadora Samantha Power. A diferença mais palpável do filme para as outras obras citadas está no enfoque: o longa da Netflix coloca a história de amor entre Sérgio (Wagner Moura) e Carolina (Ana de Armas) sob os holofotes.
Fiéis aos fatos, mas ainda embebidos de doses ficcionais impossíveis de ignorar, alguns eventos de Sérgio foram selecionados pela equipe de VEJA para averiguar o quão verossímil é a produção Netflix.
O pedido de desculpas da Indonésia ao Timor Leste em 2000
A diplomacia de Sérgio Vieira de Mello foi incumbida de uma missão aparentemente impossível: convencer o presidente da Indonésia a reconhecer a independência do Timor Leste e pedir desculpas pelos 24 anos de ocupação que ceifou mais de 100.000 vidas. “Eles só querem receber reconhecimento pelo que são. A maneira como olha para eles vai determinar a maneira como o mundo o vê”, diz o diplomata no longa da Netflix, em um diálogo que provavelmente foi romantizado para a ficção. O encontro deu resultado. Abdurrahman Wahid, no dia 29 de fevereiro de 2000, fez uma visita histórica a capital timorense Díli e pediu perdão pelas violações aos direitos humanos cometidas durante a sangrenta dominação indonésia. Na ocasião, o chefe de Estado disse: “Gostaria de pedir desculpa pelo que aconteceu no passado, para as vítimas e familiares e amigos daqueles que estão enterrados no cemitério militar de Santa Cruz. Todos são vítimas de circunstâncias que não queríamos.” Mesmo que o pedido de desculpas tenha sido refutado por muitos sucessores de Wahid, o feito de Vieira de Mello foi um marco na diplomacia mundial.
O personagem Gil Loescher
Embora Gil Loescher de fato exista, o fiel escudeiro de Sérgio Vieira de Mello, como explicado ao final do filme, é uma combinação do próprio Loescher com membros do círculo de confiança do diplomata. A manobra ficcional do longa foi uma forma de, ao mesmo tempo, homenagear um personagem de grande peso no documentário Sérgio (2009) e representar as reações do time do diplomata às suas táticas controversas de manutenção da paz. Porém, não chegaram a ser grandes amigos e o pesquisador de direitos humanos não acompanhou a missão de Vieira de Mello no Timor Leste, tampouco a de três meses em Bagdá. Loescher, na verdade, chegou à capital iraquiana somente no dia do atentado ao Hotel Canal, sede da ONU, e realmente teve suas pernas amputadas para ser resgatado dos escombros. O filme deixou de lado alguns detalhes pavorosos que o documentário não escondeu, como quando o sargento William von Zehle (interpretado por Garret Dillahunt no filme) teve de cortar ao meio um cadáver que impedia a maca com Loescher de passar – talvez em uma tentativa de fazer do filme mais uma homenagem à vida do diplomata, do que uma fiel representação do atentado que a interrompeu.
O gesto romântico para Carolina Larriera
Em um filme que ressalta o romance de Sérgio com a economista argentina Carolina Larriera (interpretada pela cubana Ana de Armas), não é surpresa que algumas cenas tenham sido romantizadas para dar brilho à relação. Mas a cena em que Carolina encontra a casa do diplomata em Díli enfeitada com velas e corações pendentes do teto não é obra da ficção. De acordo com a biografia de Vieira de Mello O Homem que Queria Salvar o Mundo, escrita pela historiadora Samantha Power, o gesto realmente aconteceu: “Daquele ponto em diante, o casal passou a se referir ao período que precedeu o encontro como ‘pré-história’. ‘História’, ele disse, ‘começa hoje’”, escreveu Samantha. Também é verdade que a economista foi uma das últimas a falar com o carioca através de um buraco feito no concreto, do lado de fora do prédio.
A declaração de Paul Bremer à imprensa
“Neste momento, meu querido amigo Sérgio está em algum lugar ali atrás. Pode ser que ele tenha sido o alvo desse ataque”, disse Paul Bremer, diplomata americano na liderança da coalizão dos Estados Unidos com o Iraque, em frente ao prédio bombardeado em Bagdá. O filme fez poucas alterações na declaração oficial à imprensa, mas alterou um detalhe significativo: nele, a fala aos repórteres acontece antes da morte de Vieira de Mello, ao passo que, na vida real, Bremer já tinha conhecimento da morte do carioca. O americano explicou no documentário de 2009 que a mentira – ou a escolha cuidadosa de palavras – foi uma forma de não deixar “que a família dele ficasse sabendo do falecimento a partir de uma declaração na televisão”.
A remoção das tropas de segurança americanas dos arredores do Hotel Canal
O objetivo da missão diplomática de Vieira de Mello era conduzir o Iraque a eleições democráticas, depois de anos da ditadura de Saddam Hussein, a partir de uma Constituição escrita por iraquianos eleitos. Os Estados Unidos tinham outra ideia em mente: na liderança do governo de Coalizão, queriam tecer o código de leis e conduta do país árabe, como forma de estabelecer domínio e soberania. O Sérgio de Wagner Moura soube deixar claro que a ONU não queria ser associada à estratégia e exigiu que as tropas de segurança providenciadas pelo exército americano fossem retiradas dos arredores do Hotel Canal. No entanto, a historiadora Samantha Power conta que a decisão não foi somente do carioca e que a ONU, normalmente protegida em missões diplomáticas pelos próprios “mantenedores da paz” e autoridades locais, estava dividida entre aceitar ajuda americana – a única disponível – e acreditar que a presença dela poderia provocar algum ataque, dado que conflitos armados estavam escalando com rapidez em Bagdá. Ainda que tenha de fato pedido para que as tropas se retirassem, Vieira de Mello estava extremamente preocupado com a segurança da sede, de vulnerabilidade óbvia, e trabalhava nos bastidores com as lideranças militares da Coalizão, a fim de convencê-las a tratar o povo e os costumes iraquianos com mais respeito e, assim, poder aceitar a ajuda na proteção.