Nazismo, fé e infidelidade: o real e o imaginado em ‘The Crown 2’
Nova leva de episódios retrata encontro tenso entre a rainha Elizabeth II e Jackie Kennedy e sugere que o príncipe Philip traía a monarca
No catálogo da Netflix desde o dia 8, a segunda temporada de The Crown é um prato cheio para aqueles que são apaixonados – ou pelo menos curiosos – pela história da rainha Elizabeth II. Após um primeiro ano em que a monarca precisou aprender a governar depois da repentina morte de seu pai, Elizabeth (Claire Foy) agora lida com os problemas no casamento com Philip (Matt Smith), o novo relacionamento de sua irmã, Margaret (Vanessa Kirby), e a visita do casal americano John F. Kennedy (Michael C. Hall) e Jacqueline Kennedy (Jodi Balfour).
A série retrata os momentos decisivos do governo da rainha, assim como os bastidores do Palácio de Buckingham. Mas, como toda obra ficcional, nem sempre se apega aos fatos como eles realmente ocorreram — como já tinha acontecido na primeira temporada. De modo geral, o seriado se mantém bastante próximo da realidade, porém dá alguns toques mais dramáticos e brinca com a ordem dos acontecimentos para dar fluidez à história.
Confira abaixo a comparação de momentos da ficção e da realidade na história da rainha Elizabeth II:
A infidelidade do príncipe Philip
Logo no começo da segunda temporada de The Crown, a rainha Elizabeth II discute com o príncipe Philip. A conversa rapidamente se desenrola apontando uma possível infidelidade do marido. Uma das evidências seria a foto da bailarina russa Galina Ulanova no meio das coisas do então duque. Galina realmente existiu e circulou entre a alta sociedade europeia, mas não há nenhuma comprovação oficial de que Philip tenha mantido relacionamento extraconjugal com ela ou com outras mulheres. A trama, contudo, não nasceu do nada. Fortes rumores de que o príncipe é infiel rondam o Palácio de Buckingham há décadas. Como recorda a revista Vanity Fair, a família real raras vezes comentou essas sugestões e biógrafos foram extremamente cuidadosos ao falar sobre o assunto – à exceção de Sarah Bradford, que afirma ter conversado com mulheres que mantiveram casos com Philip, como relata em seu livro Queen Elizabeth II: Her Life in Our Times. Já o livro Philip & Elizabeth: Portrait of a Marriage, de Gyles Brandreth, atribui ao príncipe uma declaração em que ele diz que não conseguiria ter um caso fora do casamento, porque tem um detetive em sua companhia “dia e noite, desde 1947” (o ano em que ele se casou com Elizabeth).
O amigo do príncipe
A viagem oficial de Philip pelos países da Commonwealth parece, na série, uma farra masculina, com tom de despedida de solteiro. Na vida real, o tour parece ter sido bem mais comportado, cheio de compromissos oficiais. A parada em Tonga, feita após a embarcação ter encontrado um náufrago no meio do caminho, pode nem ter existido – não há nenhuma evidência para comprová-la.
No seriado, a farra acaba quando as cartas de ostentação enviadas por Michael Parker (Daniel Ings) ao Clube da Quinta vazam. A esposa de Parker, Eileen (Chloe Pirrie), descobre as infidelidades do marido, pede o divórcio e causa um rebuliço na imprensa. Parker realmente existiu e foi secretário de Philip – eles haviam se conhecido anos antes, quando combatiam na Segunda Guerra Mundial. Como mostra a série, divorciou-se da mulher, que alegou que o marido era ausente e mantinha uma amante. Tanto Parker quanto Philip faziam parte do Clube da Quinta, grupo masculino da elite que se reunia às quintas-feiras para almoçar. No entanto, as evidências são poucas sobre os detalhes. Não se sabe como Eileen comprovou a traição e nem se Philip realmente pediu que Parker se demitisse. O site da revista Radio Times afirma que teria sido o contrário – o secretário pediu demissão e o príncipe demorou cerca de um mês para aceitar.
O pedido de Philip para ser príncipe
A crise matrimonial entre Philip e Elizabeth culmina na promoção do marido de título de duque para príncipe. O pedido teria partido dele, para ganhar respeito entre o parlamento e a corte. Uma carta enviada por Louis Mountbatten a Louise da Suécia, tios de Philip, em 1957, sugere que o marido de Elizabeth, na verdade, não ligava muito para títulos. “Lilibet está com o novo Primeiro-Ministro para pedir que Philip seja transformado em ‘príncipe’ por causa da viagem e todos esperamos que ele aceite desta vez”, escreveu Mountbatten, segundo conta Alice: Princess Andrew of Greece, biografia da mãe de Philip assinada por Hugo Vickers. A mensagem dá a entender que o título é uma espécie de recompensa pelos trabalhos prestados por Philip durante a viagem pela Commonwealth e que ele já havia recusado a honraria antes.
O crítico da rainha
A série mostra como o Lorde Altrincham (John Heffernan) criticou a rainha Elizabeth II por sua frieza e jeito de falar, chamando-a de “pedante” e “esnobe” em um artigo após um discurso da monarca em uma fábrica em 1957. Altrincham ganha notoriedade e também é atacado por defensores da rainha – chega a levar um soco por causa de seu texto. Por fim, é recebido pela própria Elizabeth, que ouve suas ideias para a modernização da monarquia. Quase tudo o que foi mostrado pelo seriado realmente aconteceu — Altrincham assinou um editorial contra a rainha em seu jornal, foi convidado para dar entrevistas e acabou golpeado no rosto por um apoiador de Elizabeth. Porém, The Crown brinca com a linha do tempo dos acontecimentos. Segundo o site do jornal The Telegraph, a decisão da rainha de transmitir a mensagem de Natal de 1957 pela TV já havia sido anunciada meses antes de o artigo de Altrincham ser publicado e o discurso de Elizabeth não acontece em 1957 e nem em uma fábrica – é, na verdade, sua mensagem de Natal de 1954. O comentário negativo de Altrincham no jornal, portanto, não é uma resposta direta ao discurso da rainha, como sugere o seriado. Já o encontro entre a rainha e o crítico, como mostra a série, nunca foi confirmado. Confira abaixo a mensagem transmitida pela TV, em 57, reproduzida com fidelidade pelo programa da Netflix.
Tio nazista
O sexto episódio trata das relações entre o duque de Windsor (antes rei Edward VIII, interpretado por Alex Jennings), tio de Elizabeth, e o alto comando nazista. Cartas e telegramas apontavam, por exemplo, que ele tinha desejado se opor ao governo britânico em 1940 e que concordava com as opiniões de Adolf Hitler. Traição e vazamento de informações graves também são citados pelo roteiro.
As histórias sobre a relação entre Edward e o alto comando nazista circulam há décadas. Apesar de a monarquia nunca ter confirmado ou se pronunciado sobre o assunto, documentos ajudam a montar um panorama sobre isso. Um documento revelado em julho trata realmente da tentativa do ex-primeiro-ministro Winston Churchill de abafar, em prol da família real, um telegrama que detalhava um plano para restabelecer o duque como rei. Porém, o duque não havia participado da concepção da ideia e se surpreendeu ao ouvi-la. O aviso sobre o bombardeio na Inglaterra também foi registrado em um telegrama. Segundo a mensagem, “o duque acredita com certeza que a continuidade do bombardeio vai fazer a Inglaterra pronta para restabelecer a paz” com a Alemanha. Nenhum documento mostra, no entanto, se Edward e a rainha realmente tiveram conversas sobre esse assunto e nem como o duque justificava suas posições, como mostra a série.
Billy Graham, o amigo da rainha
Em 1955, o americano Billy Graham levou sua cruzada evangelística a Glasgow, na Escócia, e Londres, antes de seguir por algumas das principais cidades da Europa ocidental. A rainha, então, convida o pregador e sua esposa, Ruth, para uma cerimônia privada na capela do Castelo de Windsor e, em seguida, pede ao casal que fique para o almoço. O encontro é retratado em The Crown com fidelidade. Apesar de as conversas entre a dupla não serem de conhecimento público, Graham conta em sua autobiografia Just As I Am que seus muitos encontros com a rainha — que se estenderam de forma parecida e intima pelas próximas décadas — tratavam de temáticas da fé e assuntos bíblicos, além de acontecimentos políticos. “Posso dizer que ela é uma mulher de rara modéstia e caráter. É uma das pessoas mais bem informadas do mundo. Parte do conhecimento vem de suas reuniões com os primeiros-ministros, claro, mas eu sempre percebi uma grande inteligência e conhecimento sobre assuntos variados, não só políticos”, disse Graham.
The Crown, contudo, muda a linha do tempo dos episódios ao mesclar o encontro com eventos que aconteceriam apenas a partir de 1957, caso da publicação dos documentos nazistas sobre o tio de Eilzabeth, o duque de Windsor, e a relação com o primeiro-ministro Harold Macmillan – que fica no poder entre 57 e 63.
Jackie versus Elizabeth
No oitavo episódio do seriado, a monarquia britânica recebe o casal John F. Kennedy e Jacqueline Kennedy para jantar, em junho de 1961. Elizabeth e Jackie fazem um tour pelo Palácio de Buckingham e tudo parece bem, apesar do ciúme que a rainha sente por ver todas as atenções voltadas à primeira-dama americana. Poucos dias depois, porém, Elizabeth fica sabendo que, durante uma festa, Jackie teceu comentários maldosos sobre ela e o palácio. Na vida real, de fato há registros de que Jackie não havia apreciado muito sua visita ao Palácio de Buckingham. De acordo com o diário do figurinista e fotógrafo Cecil Beaton, a primeira-dama teria confidenciado a ele que não ficara impressionada com a decoração do palácio e o vestido e corte de cabelo da rainha. Já segundo o escritor Gore Vidal, Jackie disse que achou a monarca “chata”. Não se sabe, porém, se a rainha ficou sabendo desses comentários à época e nem se o encontro que as duas tiveram meses mais tarde, em março de 1962 (que realmente aconteceu), foi para que fizessem as pazes.
Kennedy e as drogas
Quando retorna ao palácio para um novo encontro, Jackie Kennedy pede desculpas à rainha e justifica seu comportamento afirmando que estava sob o efeito de substâncias administradas por um médico que atendia a ela e seu marido. A produção acerta ao relacionar os Kennedy com o uso de anfetaminas e medicamentos injetados pelo médico Max Jacobson, que administrava drogas e remédios a celebridades como Marilyn Monroe e Elvis Presley.
A dança em Gana
Como mostra o seriado, a rainha realmente foi a Gana em 1961 para tentar apaziguar a situação com o país e evitar que ele se afastasse da Commonwealth e se voltasse à Rússia comunista. E o momento que mais parece ficção do episódio, quando Elizabeth dança com o presidente Kwame Nkrumah, de fato aconteceu. A barragem de Volta Dam foi, então, construída pelos Estados Unidos – e não pela Rússia, como temia o Reino Unido – e Gana continua na Commonwealth até hoje. A visita da monarca, porém, não foi uma tentativa de afrontar ou superar Jackie Kennedy, como sugere a série.
A tragédia na família de Philip
A série da Netflix volta ao passado no episódio 9 para mostrar a infância traumática do príncipe Philip. Sua irmã favorita, Cécile (Leonie Benesch), morre em um acidente de avião e o jovem ouve do próprio pai que a culpa é dele. Se não tivesse se envolvido em uma briga no colégio interno, Philip poderia voltar para casa nas férias e Cécile ficaria cuidando dele, assim tendo uma desculpa para faltar a um casamento em Londres. No acidente, morre toda a família de Cécile, incluindo seu marido, seus dois filhos e um filho recém-nascido – a moça havia entrado em trabalho de parto durante o voo.
Philip realmente perdeu a irmã em um acidente de avião e a tragédia mostrada no seriado é verdadeira – Cécile entrou em trabalho de parto e o corpo de um recém-nascido foi encontrado próximo ao dela pelas autoridades. Porém, não há nenhuma indicação de que a “culpa” pelo acidente tenha sido de Philip. Segundo o historiador Hugo Vickers disse em entrevista ao tabloide The Daily Mail, a irmã do príncipe já tinha a intenção de ir ao tal casamento em Londres.
A difícil relação de Philip e Charles
Na série, o relacionamento entre Philip e Charles não é nada fácil. Depoimentos dão conta que, na vida real, a relação era de fato complicada. Ao biógrafo Jonathan Dimbleby, Charles afirmou que a personalidade forte e o jeito ríspido do pai fizeram com que ele fosse retraído quando garoto. Amigos do príncipe que falaram com o escritor afirmaram que ele sofria bullying do próprio Philip, que sempre foi atlético e forte, o oposto do menino, conhecido por sua sensibilidade e gentileza. Também por essas diferenças os anos do filho mais velho de Philip e Elizabeth II na escola interna Gordonstoun foram tão difíceis: o marido da rainha acabou se dando bem no colégio, encontrando refúgio no trabalho físico, enquanto Charles se chateava com a violência dos colegas e vivia solitário. Anos mais tarde, o herdeiro do trono descreveu sua experiência na escola como “uma sentença na prisão”.