Era previsível, e foi previsto: quando chegasse a hora da dificuldade, a ameaça mais perigosa para o presidente Jair Bolsonaro não viria da esquerda, mas do autodenominado centro. Para este, aliás, parece estar em vigência um sistema como o das cotas universitárias, a autodeclaração. Nas cotas isso é até razoável. A alternativa seria criar algum mecanismo de “checagem racial”. O absurdo da hipótese dispensa maiores explicações.
Na política, porém, a coisa se complica. Pois nos dias que correm basta se dizer de centro e contra os extremismos para ser dispensado de qualquer explicação adicional sobre: 1) o que fez no passado; 2) o que pretende fazer no futuro. Além, claro, de “salvar o Brasil dos perigosos extremistas responsáveis pela insuportável polarização que impede a união e a paz nacionais”.
A esquerda está nas ruas, na internet e no Parlamento contra Bolsonaro porque ela é contra os principais aspectos do programa governamental e porque o presidente disse, e reafirma, que deseja extirpá-la da vida política nacional. Já o centro gostaria mesmo é de manter os eixos fundamentais do que vem sendo feito, mas sob uma nova direção: a dele mesmo.
Poderia, talvez, fazer concessões comportamentais e ambientais. Ainda que seja ilusão imaginar um governo dito centrista — aliás qualquer governo — dispensando, por exemplo, o apoio do agronegócio ou dos evangélicos. Mas, noves fora, a ideia do centro é repetir 1992-94: produzir com a ajuda da esquerda uma correlação de forças definitiva contra o presidente para, na sequência, recompor a base política e social do conservadorismo sob novo comando, para isolar e derrotar a esquerda.
“Um ‘centro’ contra os extremos é tema quentíssimo no topo social, mas que o povão ignora olimpicamente”
Onde residem as dificuldades desse projeto? Um empecilho muito falado é a proliferação de nomes de centro, todos hoje mais ou menos equivalentes em cacife eleitoral e bem atrás dos líderes na corrida presidencial. Há, porém, outro, mais desafiador: a necessidade de um “centro contra os extremismos” parece ser um tema quentíssimo no topo da sociedade, mas olimpicamente ignorado pelo povão.
Daí também que a terceira via esteja no momento dedicada a demolir a primeira (ou segunda, conforme o gosto do freguês), Jair Bolsonaro, para então tentar ocupar o lugar dele na montagem de uma cruzada antipetista rumo a outubro de 2022. E a tarefa anda bem facilitada por causa de como o presidente conduz os temas críticos da pandemia: o isolamento e o afastamento social, as máscaras, as vacinas etc.
Enquanto Bolsonaro é alvejado diariamente pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 no Senado e busca a sobrevivência política sob cerco duplo dos ex-aliados dele e da esquerda, esta observa um enigma. Está condenada a engrossar a ofensiva antibolsonarista, até luta para encabeçá-la, mas quebra a cabeça sobre como neutralizar o risco de repetir 1994.
Vai precisar achar um jeito de não acabar isolada por uma coalizão que, esvaziado o bolsonarismo, faça reemergir na sequência o hoje latente antipetismo para engatar uma segunda jornada salvacionista.
Publicado em VEJA de 7 de julho de 2021, edição nº 2745