As melancias e o caminhão
É inteligente pedir frieza diante da natural radicalização política
A sabedoria política diz que o eleitor sai de casa no dia da eleição não principalmente para eleger alguém, mas para derrotar. Se não dá para generalizar de modo absoluto, a coisa tem algum fundamento. Colhe o sucesso na urna quem, além de despertar o amor nos seus, sabe alimentar o ódio ao adversário. Daí que os apelos por uma política sem ódio acabem caindo no vazio, explícita ou implicitamente. Coisa de gente ingênua, ou esperta demais.
De vez em quando aparece um candidato “paz e amor”, como Luiz Inácio Lula da Silva em 2002 ou Barack Obama em 2008. Cuidado, porém: mesmo o postulante que não odeia explicitamente precisa que alguém, ou muitos, odeiem por ele. Lula colheu o fruto eleitoral de anos de ataques do PT ao tucanismo de Fernando Henrique Cardoso. E a eleição de Obama foi sem dúvida uma revanche contra o odiado governo de George W. Bush e suas guerras. Sem esquecer o ódio dos negros contra a discriminação. E sem falar na raiva do povão por causa da crise econômico-financeira desencadeada com a quebra do Lehman Brothers.
A política dita “civilizada” não elimina o ódio de raízes ancestrais e costumeiramente de características tribais. Apenas dá um jeito de as disputas serem resolvidas sem (muito) sangue. Aí diz-se que “as instituições estão funcionando”. Atenção: essa funcionalidade institucional não supõe necessariamente justiça, no mais das vezes apenas permite que a injustiça prevaleça de um jeito que não inviabilize que as coisas continuem rodando na normalidade.
Política “civilizada” não elimina o ódio, apenas dá um jeito de as disputas serem resolvidas sem (muito) sangue
Mas do que depende esse “funcionando”? Alguns nutrem a crença no sistema ideal, que vacinaria as sociedades contra o vírus da solução violenta dos conflitos. Certas vezes é chamado de estado de direito. Trata-se de um fetiche. Pois esse “estado” nada mais é que relações sociais, portanto entre pessoas, materializadas num papel. Ou num PDF. Mais provável é que a taxa de “civilização” resulte do grau de equilíbrio de forças propensas à destruição mútua.
Aqui você poderá dizer que o bom estado de direito tem a qualidade de forçar esse equilíbrio. E terá alguma razão.
Desde o surgimento das armas nucleares fala-se em “equilíbrio do terror”. O custo de romper o equilíbrio não compensa, pois muito provavelmente a ruptura levaria à destruição mútua. Parece ter sido o caso do impeachment de Dilma Rousseff. Para o PSDB e o PMDB (hoje MDB), o custo de remover o PT do poder foi alto demais, sabe-se agora. Acontece. Errar é humano. Mas, sempre lembrando o Conselheiro Acácio, é inevitável as consequências virem depois.
São inteligentes as vozes que pedem frieza diante da natural radicalização política. Talvez não pareça, mas agem cautelosamente o governo, quando aceita que tem de negociar com o Congresso, e a oposição, quando recusa embarcar numa nova empreitada de impeachment. A situação hoje é de equilíbrio. O presidente preside, a oposição se opõe, a imprensa reclama. E as melancias vão se ajeitando na carroceria do caminhão conforme os solavancos da estrada.
E quando a poeira baixa está todo mundo aí. No jogo. Melhor deixar correr assim.
Publicado em VEJA de 11 de março de 2020, edição nº 2677