Por que as normas para subir o Everest ficaram mais duras
A excursão ficou mais burocrática — e menos perigosa
A Mãe do Universo, uma das denominações dadas à mais alta montanha do mundo por povos que vivem ao seu redor, pede cautela e respeito. Situado na fronteira entre o Nepal e o Tibete, o Everest — que deve seu nome ao geógrafo inglês que mapeou a região no século XIX — ainda hoje é fonte de reverência e rituais entre etnias que moram às suas franjas. No entanto, a mística entre os aventureiros, muitos deles ocidentais, é outra. Na ânsia e na adrenalina de escalar o monte de 8 848 metros de altura, a cordialidade, os cuidados e as boas maneiras não raro são deixados de lado. O resultado: mais acidentes de percurso e lixo acumulado em meio à neve.
Para frear o desrespeito com a formação rochosa cultuada dentro e fora daquele pedaço da Ásia e conter a carga crescente de turistas irresponsáveis, o governo do Nepal acaba de instituir novas regras para subir o colosso. Há uma preocupação com a quantidade de detritos — de plásticos a fezes humanas — largada do pé ao cume. Estima-se que, fora os mais de 200 corpos de exploradores que jazem em seu ventre frio, 50 toneladas de dejetos e 3 toneladas de excrementos se encontrem nos caminhos dos alpinistas. Desde 1953, quando Edmund Hillary e Tenzing Norgay se tornaram os primeiros a chegar ao topo e retornar com êxito, o pico foi escalado milhares de vezes. Nos últimos anos, contudo, a concorrência esquentou. Em 2023, o Nepal emitiu 478 permissões para alpinistas, um número recorde. A temporada também foi uma das mais mortais: 19 pessoas foram dadas como mortas ou desaparecidas.
A decisão do Ministério do Turismo do país asiático visa corrigir essa rota. Agora, os aventureiros que desejarem desafiar o monte terão que limpar suas próprias fezes e levá-las de volta ao acampamento para descarte correto — operação que será vistoriada. As autoridades locais irão fornecer sacos que contêm produtos químicos que solidificam os excrementos e os tornam, em grande parte, inodoros. O que acontece é que, devido às temperaturas extremas, as fezes deixadas no Everest não diluem completamente, tornando-se visíveis e contaminando o solo. Além disso, os montanhistas terão a obrigação de alugar e usar um dispositivo de rastreamento, do tamanho de um pen drive, em suas jornadas — um desembolso extra na faixa de 50 reais. O intuito é que, se houver sumiços ou acidentes, as equipes de resgate possam ser mais rápidas e assertivas para salvar vidas.
De local inóspito o Everest se transformou em destino pop. Em 2019, fotos viralizaram expondo a superlotação de trechos da montanha, com centenas de alpinistas esperando até 12 horas para escalar, o que suscitou o alerta de ambientalistas. O governo nepalês inclusive foi criticado por liberar viajantes demais para galgar o monte, só que o retorno financeiro vinha falando mais alto. A partir desta temporada, porém, as diretrizes endurecem de vez. Mesmo assim, especialistas não acreditam que o destino deixará de ser objeto de desejo.
Pelo contrário. Se antes o padrão era ver alpinistas experientes nos acampamentos, hoje se multiplicam os novatos. Os espíritos destemidos e abastados dispõem não só de helicópteros para chegar à base como de instalações de luxo, com direito a massagem e entretenimento noturno. Uma viagem dessas não sai por menos de 250 000 reais, em média — custo que engloba permissões, cama, comida, transporte, guia e equipamentos de segurança. Um cenário bem diferente daquele encontrado pelo britânico George Mallory cem anos atrás. Em 1924, o alpinista iniciou a lendária expedição da qual não retornaria. Questionado sobre o motivo de querer encarar o Everest, respondeu laconicamente “Porque ele está lá”, frase que se tornou um mantra entre montanhistas. Quando o corpo de Mallory foi encontrado, em bom estado de conservação, em 1999, o monte já não era mais o mesmo. Agora, com o aquecimento global à espreita e hordas ávidas de turistas, a prudência manda seguir as novas regras — para preservar a montanha e conseguir voltar de lá.
Publicado em VEJA de 15 de março de 2024, edição nº 2884