Novo estudo de fôlego mostra a Mata Atlântica na UTI
82% das espécies endêmicas do bioma estão ameaçadas de extinção e podem desaparecer sem políticas efetivas contra o desmatamento
A história de como o pau-brasil despertou o interesse dos portugueses que aqui desembarcaram pela primeira vez, há mais de 500 anos, é conhecida. Com sua cor avermelhada, o tronco tinha enorme valor como matéria-prima de corantes, e sua exploração se mostrou extremamente lucrativa. Caravelas saíam da antiga colônia tropical carregadas. Com o tempo e o desmatamento avassalador, a espécie chegou a ser considerada extinta na virada do século XX. O pau-brasil, lembre-se, é apenas uma das mais de 5 000 espécies da Mata Atlântica, que de tão devastada ao longo da história conserva hoje apenas 20% da cobertura original. Um estudo recente da revista Science, referência na comunidade científica mundial, aponta para cenário ainda mais preocupante — ainda que seja o único bioma brasileiro contemplado com leis específicas sobre o uso do território. O controle fracassou.
De acordo com o levantamento, 82% das mais de 2 000 espécies de árvores endêmicas da mata estão ameaçadas de extinção. “Esperávamos encontrar algo em torno de 60%”, diz o coordenador da pesquisa, o brasileiro Renato Lima, professor do Departamento de Ciências Biológicas da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq). Das 5 000 espécies presentes na região, incluindo aquelas que também aparecem em outros cantos, 65% enfrentam algum tipo de risco. Trata-se de um estudo de fôlego, o maior já realizado, e parte de uma avaliação completa das populações arbóreas da Mata Atlântica. Lima e sua equipe conseguiram reunir dados da região que estavam dispersos, incluindo 3 milhões de registros de herbários e de inventários florestais, além de informações detalhadas sobre a biologia, a ecologia e os usos das espécies de árvores, palmeiras e samambaiaçus, fósseis vivos das florestas primitivas. Além disso, inovam ao usar na classificação três critérios — e não apenas um, o geográfico —, da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), autoridade mundial em espécies ameaçadas.
Além da situação crítica de espécies já conhecidas, como o pau-brasil, citado como em “risco crítico de extinção” por conta da redução de mais de 80% de sua população, árvores como a araucária, o palmito-juçara e a erva-mate, entre muitas outras, também correm perigo. Segundo os dados levantados, apenas 7% das espécies endêmicas apresentaram um declínio populacional inferior a 30% nas últimas três gerações — qualquer índice acima disso impõe alerta. “O estudo mostra quais são e onde estão as espécies mais ameaçadas”, diz Eduardo Fernandez, coordenador de projetos do Núcleo de Avaliação do Estado de Conservação da Flora, localizado no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, um dos parceiros de Lima no levantamento. A partir das informações, será lançada uma edição atualizada da Lista Vermelha, que mostra o real estado de conservação das espécies brasileiras.
A divulgação do resultado surpreendeu os especialistas em estudos de conservação do bioma. “A Mata Atlântica está na UTI”, diz Luis Fernando Guedes Pinto, diretor-executivo da Fundação SOS Mata Atlântica. “Se continuar nesse ritmo, vai acabar.” Pode haver algum alarmismo, mas convém ressaltar que o estudo não leva em conta o aquecimento global. A emergência climática transforma a Mata Atlântica em um “hotspot da biodiversidade”, como são chamadas as regiões ricas em espécies endêmicas e ameaçadas. Até 2025, o Brasil se comprometeu a reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 37%, mas ainda há muito o que fazer. Hoje, a maioria das políticas públicas está centrada na Amazônia. “A Mata Atlântica continua a sofrer grande pressão da agropecuária, principal vetor de perda de vegetação nativa”, diz Pinto. Sem uma política de desmatamento zero, o futuro é incerto.
Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2024, edição nº 2879