Ameaçadas de afundar, Maldivas tocam projeto pioneiro de cidade flutuante
Trata-se de uma possível saída para a elevação do nível do mar, que assola outros cantos do planeta
Vista de cima, parece um gigantesco coral que desponta na superfície do mar. De perto, revela-se uma construção humana sobre a lagoa de água azul-turquesa a cinco minutos de barco de Malé, a capital das Maldivas. Sem nenhum alicerce fincado no fundo do mar, a estrutura flutua como uma boia. Trata-se do primeiro protótipo de uma cidade de características inéditas que, até 2027, poderá ser habitada por 20 000 pessoas espalhadas em 5 000 unidades flutuantes com casas, restaurantes, lojas, escolas e mesquita (a população é majoritariamente muçulmana). O projeto é tido como tábua de salvação para o país, um arquipélago de 1 190 ilhas, boa parte das quais com menos de 1 metro acima do nível do mar — o que faz das Ilhas Maldivas o primeiro candidato a ser engolido pela elevação dos oceanos em consequência do aquecimento global.
As Maldivas não estão sozinhas nessa sombria ameaça. A subida do nível dos mares, entre 3 e 4 milímetros por ano atualmente, deve alcançar 1 metro nos próximos oitenta anos, o que põe em risco a maioria das cidades erguidas em ilhas assentadas sobre cordilheiras vulcânicas submersas e pode forçar o movimento de populações em núcleos urbanos costeiros. Para chamar a atenção para o problema, o ministro de Relações Exteriores de Tuvalu, outro país afetado, discursou por vídeo na Conferência do Clima da ONU, em 2021, dentro do mar, com água pelo joelho. O drama das Maldivas, no entanto, é o mais premente: prevê-se que 80% de suas ilhas afundem até 2050. Daí a importância do projeto encomendado pelo então presidente Mohamed Nasheed — outro militante da causa, que chegou a convocar uma reunião ministerial no fundo do oceano, com todo o gabinete de roupa de mergulho — durante uma visita a Amsterdã.
A Holanda, onde um terço do território está abaixo do nível do mar, concentra os maiores especialistas em estruturas que boiam — casas e hotéis conectados a um pilar que flutua conforme a maré, como as noventa moradias aboletadas em torno da ilha artificial de Steigereiland, a leste da capital. O domínio dessa tecnologia é arma essencial para as ilhas e cidades passíveis de serem tragadas, um drama que até algum tempo atrás só angustiava Veneza, a preciosidade italiana em luta eterna contra a fúria das águas. “Já vimos países desaparecerem do mapa geopolítico após guerras, mas a humanidade nunca passou pela experiência de uma nação ser fisicamente varrida do mapa. As Maldivas podem ser as primeiras, se não tomarem medidas drásticas”, diz Daniel Scott, diretor do programa de mudança climática da Universidade de Waterloo, no Canadá.
A construção da cidade flutuante das Maldivas está a cargo de duas empresas holandesas, uma responsável pelo design arquitetônico e a outra, a Waterstudio, à frente da obra em si, em parceria com o governo. “Nosso foco é a população local”, falou a VEJA Koen Olthuis, fundador da Waterstudio. “Moradias flutuantes como se vê em Miami, de 5 milhões de dólares, não solucionam o problema na grande escala.” No paraíso turístico situado no Oceano Índico, quase metade da população de 400 000 habitantes vive na capital, o que faz de Malé uma das cidades mais densamente populosas no mundo, com até três gerações de uma mesma família residindo em um apartamento. Os locais terão prioridade e preços mais acessíveis (150 000 dólares um apartamento e 250 000 uma casa) na compra de moradias na cidade flutuante, embora estrangeiros possam arrendar propriedades.
Tentando também se prevenir contra inundações desastrosas, a cidade de Busan, no sudeste da Coreia do Sul, a segunda maior do país e um dos portos mais movimentados do planeta, está desenvolvendo um projeto de construções capazes de flutuar e interconectadas por pontes, que abrigarão 12 000 habitantes. Um protótipo foi criado pela empresa Oceanix, em colaboração com a ONU-Habitat, e a expectativa é que a experiência se expanda para outros países, como forma de contornar a tragédia não só do avanço do mar, mas também das tempestades torrenciais, que só tende a se agravar com o aquecimento global. “Essas construções podem reduzir ou eliminar o terrível trauma de ver a água entrando na casa e levando tudo embora”, diz a especialista Elizabeth English, professora de arquitetura da Universidade de Waterloo. Na corrida para se defender das mudanças climáticas, sairá ganhando quem aprender a flutuar primeiro.
Publicado em VEJA de 24 de agosto de 2022, edição nº 2803