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Admirável mundo novo: as transformações da natureza com o aquecimento global

Mudanças climáticas derretem geleiras em diversas partes do mundo, ao mesmo tempo que abrem espaço para diferentes ecossistemas e formas de vida

Por Marília Monitchele Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 11 ago 2024, 08h00

A primeira menção à cidade perdida de Atlântida aparece nos diálogos de Timeu e Crítias, escritos por Platão no século IV a.C. Na obra, o filósofo grego descreve uma ilha poderosa e rica, localizada além das Colunas de Hércules, provavelmente onde é hoje o Estreito de Gibraltar. Reza a lenda que teria sido destruída por uma catástrofe natural e submergido nas águas do Oceano Atlântico. Trata-se de uma alegoria sobre a prepotência das nações, que se recusam a olhar para a natureza com humildade e respeito. A tragédia mitológica deixou lições que não foram aprendidas pela humanidade. Como consequência do aquecimento global, geleiras centenárias e milenares estão derretendo. Se o padrão de degelo for mantido, o nível do mar poderá subir até 70 metros, engolfando grande parte das cidades litorâneas ao redor do mundo. Embora possa ser trágico, o movimento tem também um outro lado pouco comentado: o de multiplicar o número de organismos vivos.

TUDO SE TRANSFORMA - Svalbard, no Ártico: setenta anos para a recuperação
TUDO SE TRANSFORMA - Svalbard, no Ártico: setenta anos para a recuperação (Francesco Ficetola/.)

A equação é complexa. Depois do derretimento, a primeira paisagem que surge é composta por camadas estéreis de rochas nuas e sedimentos. Um estudo recente publicado na prestigiosa revista Nature mostrou que esse cenário de aparência pós-apocalíptica pode dar lugar a ecossistemas complexos e diversificados, ajudando a impulsionar um sopro de vida no planeta. Durante dez anos, uma equipe multidisciplinar formada por 49 pesquisadores acompanhou a movimentação de 46 geleiras que sofreram o processo de degelo: do Himalaia aos Andes, do arquipélago ártico de Svalbard, na Noruega, até o extremo sul da Nova Zelândia, passando até mesmo pelas geleiras tropicais do México. O objetivo era explicar o que surge quando esses mantos seculares de neve deixam de existir. A resposta? Um padrão surpreendentemente amplo de geração de novas formas de vida. “O encolhimento das geleiras continua sendo uma notícia terrível”, disse a VEJA o coordenador do estudo, o doutor em ciências ambientais italiano Gentile Francesco Ficetola, professor da Universidade de Milão. “Mas agora sabemos que podemos usar terrenos degelados para mitigar as consequências das mudanças climáticas em alguns componentes da biodiversidade.”

Num trabalho de campo bastante amplo, os pesquisadores coletaram 1 251 amostras de solo em paisagens glaciais que abarcavam regiões tropicais, temperadas e subpolares, com datas de exposição que variavam de 1 a 483 anos desde o derretimento do gelo. Para a datação dos ecossistemas, foram analisadas as propriedades e os nutrientes do solo e as evidências de captura de carbono pelas plantas, além de técnicas de amostragem de DNA ambiental para recolher rastros genéticos deixados por espécies animais e mapear a biodiversidade local. Assim, os cientistas puderam estabelecer uma relação entre o momento em que uma geleira começa a recuar e a chegada de novas espécies.

RESISTÊNCIA - Cientista na Antártica: a natureza dá um jeito de sobreviver
RESISTÊNCIA - Cientista na Antártica: a natureza dá um jeito de sobreviver (Isadora Romero/Bloomberg/Getty Images)
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Evidentemente, tal processo tem maturação lenta. A transformação da paisagem árida acontece quase sempre de forma gradual, e o papel dos organismos vivos muda ao longo do tempo. No início, os microrganismos fazem praticamente todo o trabalho. Em uma labuta incansável, bactérias, protozoários e algas colonizam o solo e preparam o terreno para formas de vida mais complexas, como líquens, musgos e gramíneas, espécies capazes de resistir e prosperar em condições adversas e com poucos nutrientes. Esses grupos, aos poucos, enriquecem o solo e abrem espaço para que plantas especialistas em ambientes frios criem raízes e se desenvolvam. Por último, chegam os animais. Primeiro os herbívoros e, em seguida, predadores carnívoros.

O segredo para tal transformação é um só: tempo. “Ambientes completamente novos podem se desenvolver em algumas décadas, sendo que setenta anos são suficientes para transformar sedimentos aparentemente estéreis em prados ou pequenas florestas”, diz o professor Ficetola. Ele esclarece, porém, que a chegada de grandes animais pode levar mais de um século para ocorrer. O processo de lento renascimento não apaga a tragédia da acelerada morte das geleiras, nem atrasa o processo das mudanças climáticas e do aquecimento global. Mas mostra que, mesmo em meio à adversidade, a natureza persiste e floresce, reafirmando que a vida sempre encontra um caminho para prosperar.

Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2024, edição nº 2905

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