A nova geração de remédios que promete uma revolução contra a obesidade
Medicamentos representam um divisor de águas diante de uma condição que já afeta um em cada cinco brasileiros
A ciência do desenvolvimento de remédios é também a arte de decifrar e imitar a natureza. É princípio praticado ainda hoje, no século XXI, e representado com pompa pela novíssima família de medicamentos para obesidade prestes a chegar ao Brasil. Com o lançamento do Wegovy, o irmão mais novo e potente do Ozempic, previsto para 1º de agosto, inaugura-se oficialmente uma era de tratamentos que, ao simular hormônios fabricados pelo organismo, induzem perdas de peso antes inconcebíveis com fármacos. As “canetas” do laboratório dinamarquês Novo Nordisk são ansiosamente aguardadas pelos médicos e aspirantes às picadas semanais. É fenômeno aquecido pelo sucesso de vendas e pelas polêmicas envolvendo o primogênito da turma: aprovado originalmente para o diabetes, o Ozempic bombou como atalho para o emagrecimento.
Há uma verdade inconveniente: boa parte das pessoas não consegue perder peso apenas com mudanças no estilo de vida. Há quem se esfalfe nas academias de ginástica, viva à base de dieta e, mesmo assim, pareça condenado ao insucesso por fatores genéticos, ambientais e comportamentais. Dadas as evidentes dificuldades, a descoberta e o desenvolvimento de substâncias inéditas — desde que ministradas com zelo e acompanhamento — representam uma revolução. É marco seminal no tratamento de um problema de saúde pública que afeta mais de 1 bilhão de pessoas no mundo e segue em ascensão.
O Wegovy e outras medicações no horizonte vêm ampliar o arsenal terapêutico para essa condição crônica, capaz de encurtar a qualidade e a expectativa de vida. Ao promover reduções corporais expressivas e superiores às produzidas pelas poucas drogas disponíveis até então, a mais recente geração medicamentosa — encabeçada pela semaglutida (princípio ativo de Ozempic e Wegovy) e pela tirzepatida (Mounjaro), medicação criada pela Eli Lilly que deve chegar ao país nos próximos meses — protagoniza congressos médicos, redes sociais, almoços de negócios e movimentos nas bolsas de valores. Não à toa, a americana Lilly e a Novo Nordisk são hoje as farmacêuticas com os maiores (e mais estrondosos) valores de mercado — quase 740 bilhões e ao redor de 430 bilhões de dólares em 2024, respectivamente. Seus produtos integram a classe das incretinas, hábeis a mimetizar a orquestra hormonal para o controle glicêmico e o balanço energético. A atenção inicial das pesquisas nesse campo era o diabetes, mas, com o tempo, desvendou-se o efeito poderoso no peso — aliás, o desequilíbrio do açúcar no sangue anda de mãos dadas com os quilos a mais.
Os análogos de GLP-1 — eis a denominação científica da família — imitam, reafirme-se, a substância de mesmo nome naturalmente produzida pelo intestino, via para a promoção da saciedade e freio ao apetite. Chegaram ao mercado, no início, em versões injetáveis de uso diário, como a liraglutida, do Victoza e do Saxenda, que permanecem na ativa. Mas a semaglutida e a tirzepatida vieram oferecer não só a comodidade da aplicação uma vez por semana como perdas de peso significativamente maiores. “Um terço dos pacientes apresenta redução superior a 20%”, diz Priscilla Mattar, vice-presidente da área médica da Novo Nordisk no Brasil, sobre o Wegovy. Enquanto ele emula o GLP-1, o concorrente Mounjaro imita esse e outro hormônio, o GIP, sendo, assim, chamado de duplo agonista. Nos estudos clínicos, os pacientes perderam, em média, 22,5% do peso corporal depois de um ano e quatro meses de uso do remédio, aprovado no Brasil para tratar diabetes tipo 2 e, nos Estados Unidos, para essa finalidade e a obesidade propriamente dita. “Estamos diante de produtos capazes de salvar vidas”, afirma o endocrinologista Carlos Eduardo Barra Couri, pesquisador da USP de Ribeirão Preto.
O êxito comprovado é animador, sem dúvida, mas impõe alguma preocupação a especialistas. Tome-se, como exemplo dos temores, o dito “efeito Ozempic”: a droga, utilizada em larga escala por pessoas que queriam enxugar medidas, muitas vezes sem prescrição e orientação médica, pode resultar em náuseas, diarreia, dor de cabeça e mudanças na aparência, derivadas da perda de peso acentuada. Não há dúvida: a banalização no uso, seja da semaglutida, seja da tirzepatida e toda a companhia, é desaconselhável. “Não se trata de remédio para emagrecer, mas de um tratamento para obesidade, uma doença que exige controle contínuo”, diz o endocrinologista Bruno Halpern, presidente da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica. “O uso não se destina a quem quer perder 4 ou 5 quilos porque deseja ficar magro. Falamos, na verdade, de perda de peso, manutenção no longo prazo e melhora da saúde e da qualidade de vida.”
Se a compra sem receita e supervisão preocupa, que dirá quando a mercadoria é uma versão falsificada. Na internet, fora cápsulas manipuladas, vende-se até chá de semaglutida, item sem qualquer garantia de resultado e segurança. As medicações legítimas são fruto de anos de pesquisas, em ensaios clínicos envolvendo milhares de pacientes, que dão origem a um dossiê depois avalizado por agências reguladoras. Ainda assim, convém lembrar, podem ter contraindicações e efeitos colaterais, por ora considerados toleráveis e administráveis. E elas seguem monitoradas por órgãos de vigilância. Denúncias de que o Ozempic promoveria ideação suicida e cegueira, por exemplo, são investigadas, mas nada desabona o fármaco quando utilizado corretamente. O benefício de qualquer remédio, é evidente, depende de prescrição médica amparada em dados científicos. A semaglutida não é exceção. O Wegovy é indicado a pessoas que vivem com obesidade e têm índice de massa corporal (IMC) igual ou maior a 30 ou apresentam sobrepeso, com IMC entre 27 e 29, e ao menos uma comorbidade, como diabetes e hipertensão. Pode ser recrutado, ainda, para adolescentes acima de 12 anos e com pelo menos 60 quilos.
E, se o problema é crônico, a terapia terá de acompanhá-lo e persegui-lo. Como em qualquer plano abandonado pelo caminho, as pesquisas sugerem que parar o tratamento com os novos fármacos culmina em ganho de peso. “A obesidade é uma doença que requer tratamentos eficazes e de longo prazo, não pode ser percebida como uma escolha de vida ou algo que os pacientes devam resolver sozinhos só com dieta e exercício”, diz Rachel Batterham, vice-presidente de assuntos médicos internacionais da Eli Lilly (veja mais abaixo). “Do contrário, eles viverão ciclos de emagrecimento e reganho de peso, o famoso efeito sanfona.” Assim, o acompanhamento clínico, com os ajustes ao longo da rota, é algo indissociável da conquista e preservação das metas — e também do equilíbrio do organismo.
Diante da imposição do tratamento contínuo e com tanta gente acima do peso por aí — sem falar nas febres das redes sociais —, é fácil entender por que houve desabastecimento de Ozempic e Wegovy nos Estados Unidos, uma das nações que lideram o ranking da obesidade. Preparar-se para dar conta da demanda foi o que motivou a Novo Nordisk a levar mais de um ano, desde o sinal verde da Anvisa, para anunciar a chegada às drogarias. “Precisamos de um tempo para a companhia se organizar e adequar a produção às necessidades regionais”, diz Priscilla, a vice-presidente da empresa no país. “Estamos em processo de expansão das nossas fábricas pelo mundo e anunciamos um investimento de 4 bilhões de dólares para construção de uma unidade nos EUA depois de ter aportado 6 bilhões na ampliação da planta na Dinamarca.” Raciocínio semelhante guia a Lilly, que ainda não definiu a data de lançamento do Mounjaro. “O compromisso de fornecer e garantir o medicamento aos pacientes que recebem a prescrição é um dos fatores que consideramos antes de levá-lo a outros mercados”, afirma Luiz André Magno, diretor médico da farmacêutica no Brasil.
De fato, as companhias pioneiras terão de expandir suas linhas de montagem para dar vazão à procura e às necessidades globais, bem como aos achados das pesquisas e às inovações recém-saídas dos laboratórios. “Trabalhos divulgados recentemente mostram que, além do peso, esses medicamentos tratam gordura no fígado e apneia do sono, entre outros problemas, e protegem o coração”, afirma o pesquisador Eduardo Couri. Um estudo com a semaglutida envolvendo 17 000 pacientes, inclusive brasileiros, demonstrou que ela reduz a propensão a infartos, derrames e mortes decorrentes disso. “Houve diminuição de 20% no risco de eventos cardiovasculares maiores”, diz Priscilla.
Se o cenário já é de ebulição, tudo leva a crer que fórmulas ainda mais potentes estejam por vir. A Eli Lilly publicou resultados de ensaios clínicos com a retatrutida, o primeiro triplo agonista (ele imita GLP-1, GIP e glucagon). Projeta-se que a medicação possa atingir perdas de peso na faixa de 30%. No duelo de gigantes, a Novo Nordisk investiga uma injeção que combina o princípio ativo do Wegovy com um agente chamado cagrilintida — a expectativa é de mais um petardo para domar a glicemia e o excesso de peso.
As reduções corporais propiciadas por essas drogas ao longo de meses fizeram especialistas indagar se, no futuro, elas aposentarão as operações de redução do estômago. “Mas a cirurgia promove um nível de emagrecimento maior e tem melhor relação de custo e benefício, se considerarmos que esses medicamentos são caros e devem ser usados a vida toda”, diz Antônio Carlos Valezi, presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica. Realmente, o preço é um dos principais limitadores do acesso. O Wegovy, por exemplo, deve custar em torno de 2 500 reais a caixa. Fora as conversas entre as farmacêuticas e o governo, a esperança no fim do túnel para o bolso do cidadão é a quebra das patentes da precursora liraglutida, ainda em 2024, e o surgimento de versões similares, presumidamente mais em conta.
Há, nessa direção, discussões para a incorporação de medicamentos com esse propósito no SUS, enquanto ganha visibilidade a ideia de que a obesidade não se resume a um número de IMC ou dígitos na balança. “A abordagem do paciente não pode restringir-se à perda de peso, mas deve incluir múltiplos aspectos metabólicos, emocionais e sociais”, diz Paulo Miranda, presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. Sem entender a natureza humana, em toda a sua complexidade, dificilmente a medicina superará o colossal desafio. Que a nova era de tratamentos ajude profissionais e pacientes a acertar o alvo.
“Não há culpa… é uma doença”
A endocrinologista britânica Rachel Batterham, professora da University College London e um dos maiores nomes no estudo da obesidade, acaba de ser anunciada como vice-presidente de assuntos médicos internacionais da Eli Lilly para atuar na prolífica fase de desenvolvimento de suas medicações. Ela concedeu entrevista a VEJA com exclusividade.
O mundo acordou para o fato de que a obesidade é um problema de saúde? Passei mais de 25 anos como médica tratando de pessoas com obesidade. Infelizmente, a visão mais comum é a de que o peso é, de alguma forma, culpa ou responsabilidade delas. Isso é uma das maiores barreiras que as impedem de ter acesso aos cuidados de que necessitam. A ciência é clara: obesidade não é culpa de ninguém. É uma doença crônica e progressiva que merece a mesma atenção que outros problemas de saúde.
Mas muita gente ainda não faz essa ligação… Há mais de 1 bilhão de pessoas com obesidade no mundo e ela está por trás de mais de 200 complicações de saúde. Apesar desses números, não recebe o mesmo nível de diagnóstico, assistência médica, cobertura de planos ou cuidados de longo prazo que outras doenças.
Os novos remédios representam o maior trunfo da ciência nesse contexto? Há uma necessidade urgente de prevenir e tratar a obesidade. A prevenção primária é importante, mas não podemos ignorar tantas pessoas que já vivem com a doença e precisam de ajuda. Os medicamentos para o controle do peso podem desempenhar um papel relevante, desde que sejam usados adequadamente, dentro de uma abordagem de saúde integral. A medicação é parte da solução.
A banalização do uso é um perigo? Tenho muitas preocupações em relação ao uso de remédios para fins estéticos ou sem cuidados médicos. Eles não são aprovados nem devem ser usados para isso. Mas também me preocupo com a desinformação sobre perda de peso e as promessas de solução rápida nas redes sociais, e isso inclui a proliferação de vendas de versões manipuladas e falsificadas das medicações.
O futuro é ainda mais promissor? Além da tirzepatida, temos outros remédios em estudo, como a retatrutida. Os primeiros resultados mostraram uma perda de peso média de 24% em 48 semanas. Há quem compare esses efeitos aos da cirurgia bariátrica, mas cada tratamento tem seu papel. Cada pessoa é impactada de forma diferente. Por isso, a obesidade não pode ser tratada com uma abordagem única.
Publicado em VEJA de 12 de julho de 2024, edição nº 2901