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Um dó de peito

Cresce o grito global pelo direito de as mães amamentarem em público, sem constrangimento — movimento já mexeu até nas leis. O problema: o radicalismo

Por Thaís Botelho Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 19h40 - Publicado em 8 jul 2017, 06h00
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  • EM MAIO, a senadora australiana Larissa Waters, de 40 anos, protagonizou uma cena inédita em mais de 100 anos de história do Parlamento de seu país —amamentou a filha, Alia, de 3 meses, no plenário. A plateia, formada em sua maioria por homens, olhou a cena com espanto. Entusiasmada, repetiu o gesto outras vezes — numa das sessões, levantou-se da cadeira e foi até o microfone, durante uma votação, sem tirar o bebê do peito. Recebeu centenas de mensagens de apoio irrestrito, mas também algumas muito ofensivas. Numa delas, um tolo afirmou: “A senhora será mais lembrada por seus seios e menos por sua competência profissional”.

    A senadora reagiu, justificando o ato com uma frase curta, simples e bonita, um xeque-mate contra os raciocínios proibitivos: “Amamentei no Senado porque ela tinha fome”. Até muito recentemente, a atitude maternal dentro da casa do povo da Austrália resultaria em advertência ou punição — o aleitamento só foi permitido no interior da instituição em 2016.

    Os ventos são novos, e a postura de Larissa Waters rapidamente virou bandeira. Cresce, no mundo ocidental, o movimento pela defesa do direito de amamentar onde as mães quiserem e como quiserem — e não somente no quartinho do bebê, a meia-luz, com as portas fechadas. Na Colômbia, lojas de Bogotá adotaram manequins de mulheres com bebê nos braços, como se estivessem amamentando. A iniciativa foi de uma organização local para combater qualquer tipo de crítica. No Brasil, há uma campanha deflagrada pelas redes sociais, a Hora do Mamaço, promotora de encontros simultâneos de lactantes em diversas cidades.

    A onda de manifestações já teve impacto nas leis reais e virtuais. Com forte influência da Hora do Mamaço, cinco estados brasileiros (São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais) já adotaram normas que impedem o constrangimento de mulheres que amamentam em ambientes públicos. No fim de 2015, foi regulamentada a publicidade dos leites artificiais, que já não podem associar suas embalagens à amamentação no seio, com fotos ou representações gráficas, como se fossem a mesma coisa. O Facebook alterou sua rígida política de veto a imagens do corpo nu e liberou fotos de mulheres com os seios à mostra, dando de mamar a seus filhos.

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    Há, portanto, exponencial valorização do leite materno. A relevância para a saúde do bebê é inquestionável. Diz o pediatra Moises Chencinski, presidente do Departamento Científico de Aleitamento Materno da Sociedade de Pediatria de São Paulo: “O leite materno é insubstituível e sempre será”. No entanto, não se podem deixar de pôr na mesa a mudança de costumes e os avanços científicos que autorizam — sem dano especial à saúde de recém-nascidos, convém ressaltar — o uso de fórmulas infantis à base de leite de vaca. Hoje, há fórmulas refinadíssimas, capazes de nutrir recém-nascidos de modo extremamente equilibrado. Esses produtos têm um papel vital. Cerca de 60% das mulheres brasileiras não aderem ao aleitamento natural exclusivo recomendado até o sexto mês. Algumas por sofrerem com os mamilos inflamados, outras por serem portadoras de doenças psiquiátricas, ou pela falta de orientação. Para esse grupo, o brado pela amamentação soa frágil, dado que existe alternativa.

    E, no entanto, o tal brado não para de ser ampliado quando se discutem temas como maternidade e primeira infância. O problema, como tudo na vida, é o radicalismo. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, lugares em que a amamentação pública ganhou força de um movimento social — este que desembarca com estardalhaço no Brasil —, deu-se ao grupo das mulheres de peito aberto o nome de “lactivistas”. Há o risco, com a condenação daquelas que preferem as fórmulas prontas de leite industrializado, de voltarmos o relógio aos tempos tristes em que as mulheres eram consideradas pouco mais do que mamíferos cuja obrigação primeira era oferecer as mamas aos bebês. Entre as inglesas, por exemplo, há sessenta anos, 75% das mães davam o peito aos filhos. Uma geração depois, em 1970, apenas metade ainda o fazia, queda atribuída ao ingresso feminino no mercado de trabalho e à libertação trazida pela revolução sexual.

    O debate em torno da amamentação tem um tom moralista. Nos séculos XVII e XVIII, argumentava-se que as “boas mulheres” deveriam oferecer o peito de modo a transferir suas qualidades às gerações seguintes — no entanto, as “mulheres más” e criminosas deveriam evitar a amamentação. Hoje, o racha moral se dá entre as mulheres responsáveis, que conhecem a importância do leite dado direto do peito, e as irresponsáveis e preguiçosas, que preferem as latas e garrafinhas. É desnecessário manter esse muro — como se aquelas que amamentam tivessem 100% da razão e as outras, zero. Ou como se as mães que defendem o leite industrializado, do outro lado, tenham convicções irrevogáveis. A verdade está no meio. O mais sensato é permitir que elas possam decidir.

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    A militância materna combina com outras posturas de nosso tempo, no avesso do mundo industrial, de uma sociedade estressada e competitiva. As lactivistas mais radicais estão ao lado dos que preferem alimentos orgânicos ou andam de bicicleta, e não de carro, por exemplo. Não há nada de errado nessa ideia, desde que não se transforme em religião. E poucas atitudes são mais comoventes do que a de mães que, não importa onde estejam, oferecem o peito para acalmar o choro de fome do bebê. Achar que, publicamente, estejam atentando contra o pudor beira o ridículo. É melhor ficar com as palavras do papa Francisco. No início do ano, ao participar de um batismo coletivo no Vaticano, ele disse, ecoando a coragem da senadora australiana: “As crianças estão em um local que não conhecem, levantaram-se muito cedo, talvez, e, depois que uma começa a chorar, dá o tom, as outras a imitam e choram só porque as demais choram também. Jesus fez o mesmo: a primeira prédica de Jesus foi um choro. E, depois, como a cerimônia é um pouco longa, algumas podem ter fome. Se é assim, vocês, mamães, amamentem sem medo, com normalidade, como fez a Virgem Maria”.

    Publicado em VEJA de 12 de julho de 2017, edição nº 2538

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