A vida do italiano Carlo Acutis foi, em praticamente todos os aspectos, muito normal. Como outros jovens, gostava de jogar videogame e queria aprender programação. Religioso, tinha uma longa devoção aos milagres eucarísticos, que transformou em um site. Em 2006, foi diagnosticado com leucemia. Morreria naquele ano, aos 15 anos. Logo depois, dentro da quarentena de cinco anos exigida pela Igreja Católica, teve início o movimento em defesa de sua beatificação.
Dois milagres atribuídos a Acutis já foram reconhecidos: a cura de um menino no Brasil com problemas no pâncreas e que mal conseguia se alimentar e a recuperação de uma mulher da Costa Rica com grave traumatismo craniano. Em 2013, ele recebeu o título de Servo de Deus, primeiro passo para ser reconhecido como santo. O papa Francisco acaba de reconhecer o segundo milagre exigido pela praxe religiosa, e resta apenas marcar a data da cerimônia de canonização. E então, Acutis, já conhecido informalmente como o “santo padroeiro da internet” ou “o novo jovem beato da geração atual”, como definiu o pontífice, será o marco de um novíssimo capítulo do Ocidente.
O santo Carlo Acutis é tradução de uma estratégia, por assim dizer, de atrair rebanho renovado, na contramão dos tradicionais estereótipos. Seus devotos são jovens conectados às redes sociais, e sua popularidade mostra como a fé tem se expandido para os espaços digitais. Longe das figuras dos santos feridos e martirizados que costumavam adornar os altares, uma imagem de Acutis usando jeans e carregando mochila pode ser facilmente encontrada à venda na internet. Em vez de hinos e coros, podem ser ouvidas nas plataformas de streaming canções de rap e rock feitas como homenagem. “Cada santo tem sua época própria”, diz Marcelo Tenório, pároco da Capela Nossa Senhora Aparecida, em Mato Grosso do Sul, onde teria ocorrido o milagre de Acutis. “No nosso tempo, o martírio é outro, mas a santidade é a mesma. Acutis mostra que não é preciso abandonar seu mundo para ser santo.”
O apelo à juventude é um modo, enfim, de atrair fiéis. De acordo com uma pesquisa do instituto americano Pew Research Center, os mais jovens, especialmente os millennials e a geração Z, são menos crentes do que a geração X e os baby boomers. O levantamento estima que 63% dos adolescentes de 13 a 17 anos se identificam com pelo menos um dos ramos do cristianismo, e 32% dizem não ter afinidade religiosa alguma. O interesse soa elevado, e o desdém, nem tão grande assim. Mas convém comparar com outros períodos históricos. Há uma diferença de 9 pontos percentuais em relação aos pais, dos quais 72% se identificam com algum ramo da fé em Cristo e 24% se dizem alheios. No Brasil, uma sondagem do Datafolha mostra haver um empate técnico entre os católicos praticantes (48%) e os não praticantes (51%). A pesquisa também aponta que quanto mais velha a pessoa, maior a tendência de participar dos ritos da Igreja. Entre os que têm 60 anos ou mais, 58% praticam o catolicismo. Na faixa dos 16 aos 24 anos, a proporção cai para 42%.
Há, portanto, espaço de crescimento atrelado aos tênis carcomidos e aos videogames do bambino italiano. “O exemplo de Carlo Acutis é apenas o primeiro de muitos outros semelhantes que virão”, aposta Alex Nogueira, pároco e professor de filosofia e teologia dos seminários da diocese de Jacarezinho, no Paraná. As canonizações de santos frequentemente sinalizam mudanças. No século XVII, por exemplo, após as crises da Reforma Protestante, santos como Francisco Xavier e Inácio de Loyola indicaram um renascimento católico. Na cola de Acutis, já se destacam candidatos como o surfista carioca Guido Schäffer e o jovem italiano Pier Giorgio Frassati, cujos milagres ainda são um segredo, mas com processos em andamento. Santos com poderes como bilocação ou estigmas sangrentos ainda são cultuados, e não se podem ignorá-los entre os que creem. Mas celebre-se o sopro vanguardeiro do primeiro papa da história a escrever uma linha de código para um app e a defender a regulamentação da inteligência artificial. Sinais dos tempos.
Publicado em VEJA de 7 de junho de 2024, edição nº 2896