Chancelado pelo Tribunal Superior Eleitoral há pouco mais de três meses, o partido Cidadania destaca em seu estatuto a “defesa da liberdade, do pluralismo político e do protagonismo da sociedade civil”. Não faz nenhuma referência ao socialismo nem ao comunismo. O documento, assim, ratifica o divórcio da legenda com seus antepassados: o histórico Partido Comunista Brasileiro (PCB), fundado em 1922 — de quem é considerado herdeiro formal pelo TSE —, e o seu sucessor, o Partido Popular Socialista (PPS), nome que passou a ostentar em março de 1992, depois do fim da União Soviética, e que carregava até 2019. A mudança não é só cosmética: a sigla abandonou o marxismo-leninismo dos velhos tempos e o “socialismo democrático” dos anos pós-queda do Muro de Berlim para abraçar uma combinação que une a defesa do liberalismo econômico com um forte discurso progressista na área social.
O movimento não é ocasional. Nos últimos meses, o partido atraiu diversos grupos de renovação política como o RenovaBR, o Agora!, o Livres e o Acredito, todos guiados por certo liberalismo humanista e imbuídos da pretensão de construir uma alternativa à polarização entre a direita, representada pelo bolsonarismo, e a esquerda, ainda capitaneada por Lula e pelo PT. O objetivo final do processo é abrigar em 2022 a candidatura presidencial do apresentador Luciano Huck, hoje sem partido, mas muito ligado a esses movimentos, inclusive financiando alguns, como o RenovaBR e o Agora!. A estratégia tem duas frentes. Uma é criar uma relação próxima com esses grupos ao acomodar seus representantes no comando da sigla. No Diretório Nacional estão o senador Alessandro Vieira (SE), do Acredito e do RenovaBR, e os deputados Marcelo Calero (RJ), do Livres e do Agora!, e Daniel Coelho (PE), do Livres, este alçado à condição de líder na Câmara. A outra é deixar os parlamentares ligados a esses movimentos à vontade para votar segundo suas convicções. “Colocamos de maneira clara no nosso estatuto que não há mais fechamento de questão, para que o integrante do movimento tenha sua posição garantida”, diz Coelho. Essa orientação é essencial para atrair deputados como Tabata Amaral (PDT-SP) e Felipe Rigoni (PSB-ES), ambos ligados ao RenovaBR e ao Acredito, que foram suspensos por seus partidos após votarem a favor da reforma da Previdência, contrariando a orientação das direções. Enquanto namoram o Cidadania — e para preservar os seus mandatos —, os dois foram ao TSE pedir para deixar as suas legendas por “justa causa”, alegando que estão sendo perseguidos. No Cidadania, não teriam problemas em defender suas teses. O partido votou em peso a favor de medidas do ministro Paulo Guedes (Economia), como a reforma da Previdência, a Medida Provisória da Liberdade Econômica — que reduz a burocracia para empreendedores e flexibiliza regras trabalhistas — e a reforma administrativa, que diminuiu o total de ministérios de 29 para 22 no governo Jair Bolsonaro.
“Era muito comum que pessoas do movimento sindical participassem do dia a dia dos partidos. Hoje, temos esses movimentos políticos. É preciso ouvi-los e mantê-los por perto”, afirma o presidente do Cidadania, Roberto Freire, o fio condutor da mudança que levou a sigla dos tempos de “Partidão”, como era chamado o PCB, aos dias atuais. Ele diz que conversa com Huck desde 2017 — o apresentador chegou a ensaiar uma candidatura em 2018. Huck evita assumir que é presidenciável, mas emite sinais cada vez mais frequentes de que estará na disputa. Ele tem participado de reuniões com esses grupos e de encontros com lideranças, nos quais dá o tom do discurso em uma eventual candidatura: defender a economia de mercado, mas criar uma política consistente que evite aprofundar o abismo social existente no Brasil. “O Chile era o state of art (estado da arte). Só que se esqueceu das pessoas. Então virou exemplo de eficiência sem afetividade”, disse em evento com políticos e empresários em São Paulo, em outubro. É discurso de candidato. E é o mesmo tom do Cidadania.
Publicado em VEJA de 8 de janeiro de 2020, edição nº 2668