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Ao testar positivo para Covid-19, Bolsonaro mantém discurso negacionista

O presidente reagiu da mesma forma que vem se comportando desde o começo da epidemia: minimizou a gravidade da doença e desprezou a medicina

Por João Pedroso de Campos Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Mariana Zylberkan, Edoardo Ghirotto Atualizado em 4 jun 2024, 14h01 - Publicado em 10 jul 2020, 06h00
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  • Descobrir-se contaminado pela Covid-19 representou uma terapia de choque para abrir os olhos de líderes mundiais que desdenhavam da gravidade da doença — até sofrerem com ela na própria pele. O melhor exemplo disso foi o primeiro-ministro britânico Boris Johnson. Em meados de março, ele contava vantagem dizendo que havia apertado a mão de pacientes infectados em um hospital. No fim do mesmo mês, caiu de cama, passou três noites na UTI e, no momento da alta, agradeceu ao povo do país por respeitar as medidas de isolamento. Jair Bolsonaro, por sua vez, ao contrário do colega europeu, diante do diagnóstico positivo, não mudou de postura: minimizou a gravidade do problema (algo que vem fazendo desde o início da crise) e fez questão de reforçar que segue na direção contrária da ciência ao posar novamente como garoto-propaganda das propriedades da cloroquina, medicamento sem eficácia comprovada no combate ao vírus no organismo. “A reação foi quase imediata”, afirmou. “Poucas horas depois, eu já estava me sentindo muito bem.” Essa coerência no negacionismo isola cada vez mais o presidente no cenário global e é o alicerce sobre o qual foi construída a catástrofe sanitária do Brasil, que já enterrou cerca de 70 000 pessoas (felizmente, nas últimas semanas, os números apresentaram uma tendência de estabilização, ainda que em patamares altos).

    O presidente começou a sentir os primeiros sintomas da Covid-19 no domingo 5, uma simples indisposição, que evoluiu para um mal-estar mais intenso na segunda, com sensação de cansaço, dor muscular e febre de 38 graus. Diante do quadro clínico de Bolsonaro, o médico da Presidência desconfiou que poderia ser uma infecção pelo coronavírus e o orientou a ir ao hospital das Forças Armadas. O resultado, positivo, chegou ao presidente no final da manhã de terça e foi anunciado em uma entrevista a algumas redes de TV. Diante das câmeras, com máscara, Bolsonaro disse que se sentia bem, que sua temperatura corporal havia baixado para 36,7 graus e que podia jurar ter contraído a doença anteriormente, em algum de seus diversos episódios de imprudência, resumidos como “atividade muito dinâmica perante a população”. O anúncio teve a comparação da doença com uma chuva — “Vai atingir você, alguns têm que tomar mais cuidado” — e a “recomendação” aos mais jovens de que, se contraírem o coronavírus, devem ficar “tranquilos, porque para vocês a possibilidade de algo mais grave é próximo de zero”. Depois de dizer que seguiria os protocolos e se mostrar preocupado em infectar outras pessoas, o presidente encerrou a entrevista pedindo aos jornalistas que se afastassem e retirou a máscara para que as câmeras mostrassem seu rosto.

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    Nos catorze dias anteriores ao anúncio de que havia sido infectado pelo coronavírus, a agenda oficial de Jair Bolsonaro incluiu 57 reuniões e despachos, quatro cerimônias, uma comemoração e duas viagens do presidente, ao Ceará e a Santa Catarina — outras duas, a Minas Gerais e a Goiás, foram feitas fora da agenda. Na maioria dos eventos fora do Palácio do Planalto, ou com outras autoridades, Bolsonaro usou máscara, mas não deixou o hábito, inoportuno para uma pandemia, de distribuir apertos de mão e abraços. Conforme levantamento feito por VEJA com base apenas nos registros oficiais, 81 pessoas estiveram com Bolsonaro no período, entre as quais o vice-presidente, Hamilton Mourão, 22 dos 23 ministros, cinco secretários especiais, cinco presidentes de estatais, os chefes da Aeronáutica e da Marinha, os presidentes da Câmara e do Senado, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, dezoito parlamentares, o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, o presidente do STJ, ministro João Otávio Noronha, os embaixadores dos Estados Unidos e de Israel, nove dirigentes de clubes de futebol e dez empresários pesos-­pesados. Contando encontros fora da agenda, conversas em viagens e cerimônias e contatos com funcionários do palácio, o número de pessoas que tiveram contato com o presidente chega, certamente, às centenas.

    Confirmado o diagnóstico de Bolsonaro, as maiores preocupações recaíram sobre Paulo Guedes, de 70 anos, presente em doze encontros oficiais com o presidente na quinzena anterior. Guedes correu para fazer um exame de Covid-19, cujo resultado deu negativo. Além do chefe da Economia, o embaixador americano no Brasil, Todd Chapman, testou negativo. Ele foi companheiro de Bolsonaro, de três ministros-generais e do chanceler, Ernesto Araújo, em um animado almoço comemorativo do aniversário da independência dos Estados Unidos no dia 4 de julho, com muitos abraços, apertos de mão e nenhuma máscara.

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    A despeito da confraternização, o alinhamento com o governo de Donald Trump na questão do coronavírus ficou para trás. Em viagem aos Estados Unidos em março, Bolsonaro e Trump jantaram com ar de tranquilidade e confiança no momento em que já se faziam alertas sobre a chegada com força da doença aos dois países. Com o passar do tempo, à medida que os estragos do vírus apareciam, Trump deu alguns passos para trás na postura negacionista, deixou de propagandear as maravilhas da cloroquina e começou a citar o Brasil como exemplo a não ser copiado no combate ao vírus. Sem o apoio político de seu ídolo Trump, Bolsonaro ficou ainda mais isolado no cenário mundial, ganhando da imprensa estrangeira o título de líder da “Aliança dos Avestruzes”, entre outros apelidos negativos para classificar a sua postura de negação da realidade. “A imagem do Brasil no exterior em relação a esse assunto é péssima”, afirma Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde, demitido da pasta por discordar da visão do presidente (leia a entrevista ao lado).

    Em meio à crise, o país perdeu dois ministros da Saúde e, desde 15 de maio, a pasta é tocada por um interino, o general Eduardo Pazuello. Como reflexo dessa confusão, o Brasil tem enfrentado a pandemia sem uma política unificada. A falta de coesão nas decisões tomadas em cada unidade da federação, assim como a demora na distribuição de recursos por Brasília, colaborou, por exemplo, para que estados mais pobres, necessitados de mais ajuda do governo federal para a compra de equipamentos, se transformassem em epicentro de mortes.

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    Questões técnicas como a necessidade de quarentenas e o uso da cloroquina viraram focos de debates políticos e ideológicos. Serviram também para alimentar o clima de polarização no país. Até a descoberta da doença do presidente serviu de motivo de divisão. No dia do anúncio, duas hashtags dominaram as redes sociais: a solidária #ForçaBolsonaro e a cruel #ForçaCorona. Na tarde da última quinta, 9, o presidente se mostrava mais disposto e seguia trabalhando isolado. Sua rápida recuperação é desejada pela porção civilizada e majoritária do Brasil, a mesma que torce para que o episódio do diagnóstico cure também a cegueira dele em torno da seriedade da pandemia. Não é coerente nem correto continuar desprezando um mal que já ceifou a vida de cerca de 70 000 pessoas.

    Publicado em VEJA de 15 de julho de 2020, edição nº 2695

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