O humorista carioca Marcelo Adnet, 38 anos, sempre imitou políticos, modalidade em que se aperfeiçoou na última eleição presidencial, quando deu vida e graça aos candidatos — inclusive Jair Bolsonaro, cujos trejeitos ganharam contornos hilários em sua versão escrachada. Egresso da MTV e integrante de uma turma que reinventou o humor nacional, Adnet acha que cabe, sim, fazer rir nestes sombrios tempos de coronavírus, sobretudo no que tange à patetada da classe política (ele obviamente não perdoou a inépcia de Bolsonaro com a máscara sambando no rosto numa das coletivas de que o presidente participou). Fechado no apartamento na Zona Oeste do Rio, onde vive com a mulher, a atriz Patrícia Cardoso, Adnet parou por ora as gravações do programa Fora de Hora, da Rede Globo. Em entrevista via Skype a VEJA, contou que não descarta ingressar na política e fez uma revelação: “Sofri abusos sexuais na infância e isso me causou um trauma”.
Dá para fazer piada nestes tempos de coronavírus? Com responsabilidade, sim, é claro. Tem um manancial enorme por aí para brincar. Basta olhar para as falas risíveis de certas autoridades. Beiram o absurdo. Outro dia, fiz um vídeo satirizando a forma ridícula como Bolsonaro colocou a máscara dele no rosto. Eu não estava propagando desinformação, como muita gente tem feito, mas criticando um presidente que, no lugar de orientar, estava desorientando. Cheguei a pensar em fazer piada com o Doria (governador de São Paulo) mandando um recadinho para o coronavírus assim: “Em São Paulo, o vírus é mais produtivo”. Era boa, mas desisti. Estaria desrespeitando o estado com o maior número de vítimas da doença no Brasil. Achar os limites do humor numa situação como esta é uma questão de bom senso.
Como o humor pode ajudar a suavizar as ansiedades nesta hora? Acredito na função terapêutica do humor. Ele provoca reflexão, entretém, faz rir. Acaba sendo uma ferramenta para botar para fora as agruras do confinamento social, para extravasar as angústias que vêm do desalento e das incertezas. Não é à toa que se vê uma produção colossal de memes sobre o corona. Eles falam de tudo com graça: solidão, atritos familiares, inseguranças financeiras e até das pessoas entupindo o carrinho no supermercado de papel higiênico.
Qual é a piada que não tem graça agora? Aquela que esbarra na questão ética. Não dá para fazer piada com as vítimas do coronavírus, com os integrantes do grupo de risco, com a alta incidência de infectados na Itália, e por aí vai. Além de ser de mau gosto, esse humor fora de hora pode criar uma linha cruzada justamente quando todo o esforço é para que as pessoas se mantenham muito bem informadas.
Por que Bolsonaro é um de seus alvos preferenciais? O presidente é uma piada pronta, talvez a figura mais caricata que já vi na vida. Não apenas na forma de falar, de pensar ou de se comportar, mas, sobretudo, no conteúdo. Collor, Fernando Henrique, Lula, Dilma, todos eram passíveis de sátiras. Só que nunca um governante disse tanta bobagem, seja por incapacidade, seja por estratégia mesmo.
É fácil interpretá-lo? Quando fiz Ciro Gomes, Haddad, Alckmin naquela série de presidenciáveis, Bolsonaro baixou no ato, saiu de primeira, sem ensaio.
E o restante do clã Bolsonaro, não o inspira? Os filhos têm traços do pai, porém são mais aguados, sem sal. O Carlos é o que mais se assemelha ao Jair: se mete em briga, cria teorias malucas, faz barulho no Twitter. Mas nenhum deles me interessa como comediante.
“O presidente Bolsonaro é uma piada pronta, talvez a figura mais caricata que já vi na vida. Não apenas na forma de falar, pensar ou de se comportar, mas, sobretudo, no conteúdo”
Algum personagem da República inspira sua verve cômica tanto quanto o presidente? O Sergio Moro. Embora tenha jeitão de sujeito centrado, comedido e avesso a arroubos, fica se equilibrando na linha fina entre uma postura austera e respeitada e o estilo apatetado. Adoro imitar o Moro.
Considera explorar outras figuras que transitam em Brasília? Paulo Guedes é ranzinza, enfezado, ele não. O Abraham Weintraub, da Educação, é só aquele tipo baixinho, metido, com um modo de falar engraçado, mas também sem muito a oferecer. O general Mourão não deixa de ser interessante. Ele entrou como militar e hoje tem traços bem mais civis que boa parte do governo. Agora humorista que é humorista não pode deixar de fora a Regina Duarte, que fez um discurso hilário de posse misturando caipirinha de maracujá, tatuagem, palavrão e pum de palhaço.
Acredita que a nova secretária da Cultura fará um bom trabalho? Em comparação a Roberto Alvim (aquele que imitou o discurso do ministro nazista Joseph Goebbels), é um enorme avanço. Regina se mostra alinhada com este governo, que por sua vez vê nela uma oportunidade de marketing e propaganda. O trabalho dela não será nada fácil. Daqui a pouco vão acusá-la de ser comunista, vocês vão ver.
O senhor vem sendo alvo de ataques de bolsonaristas nas redes. Já se sentiu intimidado? Recebo várias ofensas e imprimo as mais graves para me resguardar. Cheguei a registrar na delegacia um boletim de ocorrência na época das eleições. Me ameaçaram de morte dizendo: “Vou te quebrar todinho e dar um tiro na tua cara quando vier na minha cidade”.
Teve medo? Não desprezo as intimidações que recebo. O mínimo que posso fazer é me prevenir.
Quem rende mais piada, a esquerda ou a direita? Há loucura de ambos os lados, e as duas vertentes podem ser bastante cômicas. Durante anos interpretei um militante de esquerda revoltado com a Rede Globo, onde eu já trabalhava, que vivia embarcando em teorias da conspiração. Embora me considere de esquerda, não sou um extremista à la Che Guevara, e o humorista precisa manter a crítica sempre afiada.
Já pensou em entrar para a política? Sabe que até penso nessa possibilidade? Mas não agora. Na adolescência, cheguei a cogitar muito isso. Porém, nestes tempos, considero uma empreitada perigosa e que poria não só a mim, mas também a minha família em risco. Não dá para esquecer a execução da Marielle Franco, né?
O senhor é coautor de um samba-enredo para a São Clemente, escola de samba do Rio, que foi criticado por figurões de Brasília. Isso o incomodou? Eu me senti lisonjeado quando o pastor e deputado federal Marco Feliciano vaiou o samba. Ele esbravejou contra o verso que dizia que “o vigário de gravata abençoa a mamata”. Isso mostra que vestiu a carapuça e, de quebra, ainda divulgou meu trabalho.
No Carnaval, aliás, o senhor seguiu imitando Bolsonaro e fez até debochadas flexões na Marquês de Sapucaí. Não está repetindo demais a piada? É que o presidente Bolsonaro não para de me dar material. Por força do ofício, fico atento a tudo o que acontece ao meu redor. Faz parte do papel do humorista, que traduz o que vê do jeito que sabe, sempre enfatizando o ridículo.
A onda do politicamente correto é uma camisa de força para quem vive do humor? Tem ainda muita gente por aí que embarca no politicamente incorreto de forma grosseira e até bate no peito fazendo marketing disso. Não gosto, mas não me sinto no direito de dizer: “Isso não é engraçado”. Não posso controlar o riso de alguém, da mesma maneira que a ministra Damares não pode frear os desejos sexuais da população. Particularmente, repudio quando o politicamente incorreto descamba para a exaltação de preconceitos. Agora, rir de nossos defeitos e dramas, saber rir de nós mesmos, isso é outra coisa.
O humorista Marcius Melhem pediu afastamento da Rede Globo há pouco mais de um mês, após ser acusado de assédio moral pela colega Dani Calabresa. Ele foi seu companheiro no Tá no Ar, e ela é sua ex-mulher. Quem está certo? Não presenciei a situação e seria injusto se tomasse partido. Torço para que o fato seja devidamente apurado e me mantenho neutro por respeito aos dois.
Quando esteve casado com Dani Calabresa, o senhor foi flagrado beijando outra mulher e se desculpou. Casado de novo, apareceu mais uma notícia de traição. O que tem a dizer? Não costumo falar da minha vida pessoal, mas me vi obrigado agora. Foram situações completamente diferentes. Desta vez, tanto eu como minha atual mulher saímos com outras pessoas no período em que estivemos separados. Uma delas, com quem eu saí, decidiu trazer a história a público. Não considero isso uma notícia.
Por esses episódios, o senhor foi acusado de ser machista. É assim que se sente? Como grande parte dos brasileiros, fui educado com base em padrões que hoje não são mais aceitos. É claro que já devo ter sido machista, mas acredito que muito menos do que a média. E isso, certamente, tem a ver com traumas que sofri.
“Fui abusado sexualmente duas vezes, aos 7 e aos 11 anos. Na primeira, nem sabia o que era sexo. O caseiro do lugar onde eu passava férias começou a se aproximar e a pedir favores”
Que traumas são esses? Fui abusado sexualmente duas vezes, aos 7 e aos 11 anos. Na primeira, nem sabia o que era sexo. O caseiro do lugar onde eu passava as férias começou a se aproximar de mim e pedir favores. Ele me chantageava dizendo que, se contasse algo a qualquer pessoa, meu cachorro morreria. Eu era muito ingênuo. Um dia, quando só estávamos eu e ele em casa, foi para cima de mim. Senti uma dor imensa, mas durou pouco porque meus parentes, que tinham ido ao mercado, voltaram para buscar a carteira. Mais tarde, o pesadelo se repetiu com um amigo mais velho da família. Ele não chegou a consumar o ato, como o caseiro, mas me beijou e passou a mão no meu corpo. Foram dois episódios difíceis.
Por que nunca tocou nesse assunto publicamente? Para se ter uma ideia, só depois da morte desse conhecido da casa, há cerca de dez anos, consegui contar à minha família. Hoje, já falo de maneira natural porque entendi, após anos de análise, que o constrangimento não é meu, e sim de quem me abusou. O que fica disso é o susto, o trauma, a desconfiança.
Com a suspensão das gravações do Fora de Hora, como o senhor tem se mantido ocupado? Os projetos estão parados. Iria gravar um programa diário na Olimpíada, que foi cancelada. A única coisa certa é que no ano que vem vou estrear como carnavalesco na agremiação Botafogo Samba Clube, da terceira divisão, e compor um samba-enredo para a São Clemente. Não está fácil para ninguém, mas tento extrair algo de bom desta pausa forçada. Nos dias de hoje, as pessoas medem o que são pelo número de curtidas nas redes e o que se fala delas no Google. Ironicamente, isso está mudando no mundo do coronavírus. O isolamento impõe o reencontro consigo mesmo. É a vida real.
Publicado em VEJA de 15 de abril de 2020, edição nº 2682