Bandeira bolsonarista, o ensino em casa entra em discussão no Congresso
A Câmara dos Deputados se prepara para votar o projeto de lei que regulamenta o 'homeschooling', apoiado pela bancada evangélica
No rol de 34 matérias que tramitam pelo Congresso Nacional e são consideradas prioritárias pelo governo, apenas uma diz respeito à educação — e seus desdobramentos preocupam. A Câmara dos Deputados se prepara para votar, em regime de urgência, um projeto de lei que regulamenta o ensino domiciliar, no qual os pais se encarregam da educação formal dos filhos. O homeschooling, como ficou conhecido, é compromisso de campanha de Jair Bolsonaro com sua base conservadora, sobretudo a poderosa ala ligada às igrejas evangélicas. Por se tratar de tema polêmico, permaneceu adormecido na gaveta das lideranças até ser resgatado agora pelo atual presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL). Ao negociar o apoio do Planalto na disputa pelo cargo, ele se propôs a pôr o projeto em pauta ainda no primeiro semestre. O debate em plenário promete emoções, já que o aprendizado em casa reverte a obrigação de que crianças de 4 a 17 anos frequentem a escola — o modo pelo qual, estabelecido por lei, se deu o avanço no grau de instrução da população brasileira nas últimas décadas.
Mundialmente, o conceito de homeschooling é bandeira de duas ideologias opostas: a ultralibertária, que não vê nem qualidade nem utilidade no ensino formal; e a ultraconservadora, para quem a sala de aula é um antro de bullying, uso de drogas e, no caso brasileiro, suposta doutrinação marxista por parte de professores e educadores. O projeto que tramita na Câmara tem a assinatura dessa segunda linha, tanto que dois ministros ideológicos disputam protagonismo no seu andamento: Damares Alves, da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos — que articulou até a criação de uma frente parlamentar para defender a ideia —, e Milton Ribeiro, pastor presbiteriano à frente da pasta da Educação. “O homeschooling é o caminho de a gente livrar as famílias da forma agressiva pela qual a esquerda tomou conta da educação”, prega com todas as letras o deputado federal Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), representante da bancada evangélica.
Na tentativa de evitar um bate-boca virulento quando o assunto chegar ao plenário, Lira entregou a redação do projeto à deputada Luísa Canziani (PTB-PR), de 25 anos, a mais jovem da casa. Apesar da pouca experiência, a relatora circula bem entre as correntes políticas, interessa-se pelo ensino e preocupou-se em dar contornos mais técnicos do que ideológicos ao texto. “Esta modalidade de educação já é hoje abraçada por alguns brasileiros sem nenhum tipo de regra”, diz Luísa. A Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned) calcula que 17 000 famílias adotem o sistema no Brasil — menos de 1% do total. Só que os pais e mães das crianças envolvidas estão sujeitos a processo por abandono intelectual dos filhos. Em setembro de 2018, examinando um desses casos, o Supremo Tribunal Federal determinou que o ensino domiciliar em si não fere a Constituição, mas precisa ser regulamentado por lei específica. “Estamos em um limbo jurídico. Pelo menos 100 famílias foram processadas depois da decisão do STF”, lembra Rick Dias, presidente da Aned.
VEJA teve acesso exclusivo ao texto do projeto de lei, que está praticamente pronto e deve ser apresentado até 15 de maio. Ele estabelece, em primeiro lugar, que o ensino doméstico tem de cumprir a Base Nacional Comum Curricular ensinada nas escolas. Também determina que os pais apresentem certidão de antecedentes criminais, que ao menos um deles tenha diploma universitário e que aceitem receber visitas do Conselho Tutelar. Outra condição para o ensino domiciliar é que a criança esteja matriculada em alguma escola e nela se submeta a avaliações periódicas em uma instituição credenciada pelo MEC. A ala radical dos defensores do homeschooling na Câmara, contudo, discorda da exigência. “Obrigar o aluno a fazer diversas provas dentro da escola é burocratizar demais o sistema, tornando a educação em casa inviável”, argumenta o deputado Marco Feliciano (Republicanos-SP), outro prócer da bancada evangélica.
Os opositores do projeto apontam na insistência dos evangélicos por sua aprovação um interesse não só ideológico, mas também financeiro. Uma ideia não incorporada ao texto, mas não descartada, é que os pais possam contratar um preceptor para assumir o ensino dos filhos, figura que as igrejas se dispõem a providenciar. Ofereceriam inclusive aulas em dependências religiosas, o que faria delas uma espécie de escola informal. Assumindo essa função, poderiam se sentir no direito de reivindicar uma fatia do Fundo de Educação Básica, o Fundeb, como fizeram em outras ocasiões — todas frustradas. Otimistas, instituições evangélicas já começaram até a vender na internet material didático voltado para o ensino doméstico e ainda cursos de treinamento para os pais.
Entre as críticas ao ensino em casa, a principal diz respeito ao isolamento da criança e sua exposição a um modo único de pensar. “A ideia de homeschooling é pautada pelo fim do convívio com o diferente e com a diversidade do ambiente escolar”, diz Priscila Cruz, diretora executiva da ONG Todos pela Educação. Outro temor é que a nova lei contribua para agravar a evasão escolar, um velho problema da educação brasileira. Preocupa ainda o fato de, longe dos olhos de mestres e colegas, as crianças ficarem mais sujeitas a violência doméstica, abusos sexuais e trabalho infantil.
Com certo atraso, o Brasil repete o dilema por que passou a maior parte dos 65 países onde o ensino domiciliar já é legalizado. Nos Estados Unidos, a prática está em vigor, de diferentes maneiras, em todos os cinquenta estados, abrangendo 2 milhões de crianças. Um estudo da Universidade Harvard mostrou que mais da metade das famílias adeptas do método é cristã fundamentalista, que questiona a ciência, promove a subserviência feminina e chega a defender a supremacia branca. “Crianças têm o direito de crescer expostas a ideias e valores diversos dos de seus pais, em nome de um futuro aberto, em que elas escolham o próprio caminho”, diz a americana Elizabeth Bartholet, coordenadora do Programa de Direito da Criança da Harvard Law School. O conhecimento, para ser libertador, não deve estar delimitado pelos muros da casa de cada um.
Publicado em VEJA de 5 de maio de 2021, edição nº 2736