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Do aterro à tomada: a usina que gera eletricidade com gás do lixo em SP

Em Paulínia, usina termelétrica usa o metano do lixo para gerar eletricidade, reduzindo emissões e apontando caminhos para a transição energética brasileira

Por Ernesto Neves, de Paulínia
Atualizado em 17 jul 2025, 21h18 - Publicado em 11 jul 2025, 06h36

À primeira vista, o cenário é comum. Quase 500 caminhões despejam, diariamente, 4 500 toneladas de resíduos em uma imensa área de Paulínia, no interior de São Paulo.

Os detritos são produzidos pelos cinco milhões de moradores de Campinas e do entorno, uma região altamente industrializada e crucial para a economia nacional. O cheiro é forte, o calor do solo é palpável, e o movimento não para.

Por trás da rotina de um dos maiores aterros sanitários de São Paulo, está em curso uma revolução silenciosa e promissora no uso de energia limpa no Brasil. A reportagem visitou o local como parte da Expedição VEJA, que está rodando o Brasil para conhecer projetos inovadores de sustentabilidade e destacar temas relacionados à agenda da COP30, a Conferência do Clima da ONU que acontecerá em novembro em Belém, no Pará.

Localizada em Paulínia, uma das cidades que compõem o polo econômico e industrial do interior paulista, a Usina Termelétrica (UTE) Paulínia Verde marca uma nova etapa na história do lixo urbano brasileiro.

Em vez de simplesmente enterrar os resíduos e liberar gases do efeito estufa na atmosfera, a usina capta o metano gerado pela decomposição da matéria orgânica e o transforma em eletricidade.

A extensa rede de dutos transporta o gás que antes poluía para virar eletricidade
A extensa rede de dutos transporta o gás que antes poluía para virar eletricidade (Cláudio Gatti/VEJA)

O projeto é apontado como um modelo de economia circular: reaproveita gases poluentes, gera energia limpa, reduz emissões e ainda contribui com créditos de carbono.

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A proposta é simples, mas o impacto é profundo.

O metano, gás produzido quando restos de comida, folhas e papel se decompõem sem contato com oxigênio, tem um poder de aquecimento global cerca de 25 vezes maior do que o dióxido de carbono.

Em vez de deixá-lo escapar ou queimar, a tecnologia instalada no aterro de Paulínia faz o seguinte: capta o gás por uma rede de dutos subterrâneos, purifica esse biogás até transformá-lo em biometano, e, então, o injeta em geradores térmicos que produzem eletricidade firme, renovável e de baixo carbono.

“É uma tecnologia simples, barata e extremamente poderosa. Pode tirar comunidades da vulnerabilidade energética e econômica”, diz José Maria da Silveira, do Centro de Estudos em Economia Aplicada, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

“O biogás é transição energética com justiça social. É uma das soluções mais coerentes que temos diante da crise climática”.

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Lixo despejado no Aterro de Paulínia é coberto por camada de terra. Uma rede de dutos capta o gás resultante da decomposição da matéria orgânica
Lixo despejado no Aterro de Paulínia é coberto por camada de terra. Uma rede de dutos capta o gás resultante da decomposição da matéria orgânica (Cláudio Gatti/VEJA)

O processo funciona assim: o lixo é depositado e coberto com terra, criando um ambiente sem oxigênio. Bactérias naturalmente presentes começam a decompor o material, liberando uma mistura de gases.

Essa mistura é coletada por 35 quilômetros de tubos estrategicamente instalados no solo e enviada para uma central de purificação.

Ali, são removidas impurezas como o CO₂ e o enxofre, transformando o biogás em biometano, um gás limpo e de alto valor comercial. A usina produz 22 megawatts.

“Você constrói um sistema de captação no próprio aterro. Leva esse biogás a uma estação. Ali, ele recebe um tratamento até atingir uma pureza de 90%”, diz Alexandre Americano, da Mercurio Partners, responsável pela operação da usina juntamente com a Orizon e o Grupo Gera.

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“Esse gás, por sua vez, alimenta os geradores, produzindo a energia elétrica que chega até nossas tomadas”, prossegue Americano.

A usina de Paulínia gera 22 megawatts por hora, energia suficiente para abastecer cerca de 500 000 pessoas. Essa produção segue por oito quilômetros de linhas de transmissão, onde chegar à subestação do Sistema Interligado Nacional.

O projeto saiu do papel em 2021, quando uma seca prolongada fez baixar os reservatórios das principais hidrelétricas do país, fazendo reaparecer o fantasma de um racionamento nos moldes do que ocorreu duas décadas atrás.

Desde então, a termelétrica verde integra o sistema brasileiro com o intuito de reforçar e diversificar nossa matriz energética.

“Em 2003, o Brasil tinha apenas duas indústrias do tipo instaladas. Hoje, já ultrapassamos 800. Isso mostra como essa tecnologia cresceu de forma silenciosa. E principalmente no campo, onde ela faz toda a diferença”, diz Carolina Bueno, pesquisadora do Earth and Planetary Sciences, da Universidade da Califórnia.

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“Em tempos de emergência climática, ter uma fonte de energia local, que não depende da hidrologia, é um trunfo. O biogás não só evita emissões de metano como transforma um passivo ambiental, o resíduo, em ativo energético”, diz Bueno.

Douglas Ramboni, coordenador de biogás e energia em Paulínia, inspeciona dutos que captam o metano
Douglas Ramboni, coordenador de biogás e energia em Paulínia, inspeciona dutos que captam o metano (Claudio Gatti/VEJA)

Para garantir que o gás coletado seja de qualidade e possa abastecer a usina, é necessário realizar a verificação diária através de poços instalados no aterro. Computadores checam, em tempo real, o gás que viaja pela rede de dutos.

A operação tem características complexas, entre eles coordenar a captação do biogás em áreas onde há despejo de lixo pelos caminhões que chegam ao aterro.

Fatores externos, como a chuva ou a temperatura mais baixa, podem reduzir a quantidade de gás emitida. Mas não há uma oscilação grande, que ameace nossa operação”, garante Douglas Ramboni, coordenador de biogás e energia.

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O engenheiro afirma ainda que um aterro pode produzir gás em nível suficiente para ser comercializado até uma década depois do aterro ser desativado, o que reforça a viabilidade de projetos desse tipo.

Ramboni também é responsável por acompanhar de perto a expansão da usina, que vai ampliar a capacidade de produção de biometano.

“Desta vez, porém, o produto será comercializado como combustível, podendo ser utilizado para abastecer automóveis, por exemplo”.

Caio Takase, gerente geral da Usina Paulínia Verde
Caio Takase, gerente geral da Usina Paulínia Verde, inspeciona a operação (Cláudio Gatti/VEJA)

“Todo aterro que possua uma quantidade razoável de resíduos capaz de gerar gás pode se tornar uma fonte de eletricidade a um custo muito baixo”, diz Caio Takase, gerente geral da usina.

Apesar de o Brasil consumir cerca de 52 milhões de metros cúbicos de gás natural por dia, segundo dados da ABEGÁS, apenas 1,4% desse volume vem de fontes renováveis como o biometano.

A matriz do gás natural no Brasil é quase totalmente fóssil, 99%, segundo estimativas do setor.

Nesse cenário, os resíduos sólidos e orgânicos surgem como estrela da transição energética, já que podem ser convertidos em gás natural renovável (GNR) por meio da purificação do biogás gerado em aterros, propriedades rurais e estações de tratamento.

Os principais operadores de aterros sanitários do país já se movimentam para ampliar a produção.

“Transformamos os aterros no que chamamos de ecoparques. Neles, o lixo deixa de ser fim de linha para virar matéria-prima de novos ciclos produtivos”, afirma Milton Pilão, presidente da Orizon.

“Hoje, 11% de todo o lixo coletado no Brasil passa por nossas mãos. Estamos em 12 estados e em franca expansão”, completa.

A expectativa é que, nos próximos cinco anos, o volume de biometano salte para algo entre 5 e 6 milhões de metros cúbicos por dia, multiplicando a oferta atual por mais de sete vezes.

Em um cenário otimista, o Brasil poderia produzir até 12 milhões de metros cúbicos diários a partir de todo o seu resíduo disponível, ou seja, quase 15 vezes mais do que produz hoje.

Esse avanço tem implicações diretas para a indústria e a logística nacional.

O biometano pode substituir o gás natural fóssil no setor industrial e, principalmente, o diesel na frota de caminhões, que é hoje o motor da economia brasileira, mas também uma das principais fontes de emissões de poluentes.

Segundo a ANP, há 35 novos projetos de usinas de biometano em processo de autorização. Já a Abiogás projeta que, até 2032, o Brasil terá capacidade para produzir até 120 milhões de metros cúbicos por dia, o suficiente para impulsionar a descarbonização de setores chave da economia.

Prática já é comum nas economias mais avançadas

Internacionalmente, os exemplos se multiplicam. Em Plessis-Gassot, na França, um antigo aterro foi transformado em uma central de energia capaz de gerar eletricidade para 40 mil residências, além de aquecer parte de uma cidade vizinha.

No Reino Unido, o aterro de Pitsea produz 16 MW, o suficiente para abastecer 14 000 lares. E em Western Isles, na Escócia, uma planta piloto transforma resíduos urbanos em combustível sólido para aquecimento comunitário.

O que une todos esses exemplos é a mesma lógica: transformar um problema urbano em solução.

Com a crescente demanda por fontes renováveis, a pressão para reduzir as emissões de gases do efeito estufa e a necessidade de diversificar a matriz elétrica brasileira, o biogás desponta como uma alternativa estratégica.

Ele é renovável, produzido localmente, gera empregos, reduz a dependência de combustíveis fósseis e ainda mitiga impactos ambientais.

Funcionários realizam a manutenção de rotina nos sistemas da UTE Paulínia Verde
Funcionários realizam a manutenção de rotina nos sistemas da UTE Paulínia Verde (Claudio Gatti/VEJA)

Além da energia: o que mais pode nascer dos aterros?

O aproveitamento energético do lixo não se limita ao biometano. Muitos dos resíduos sólidos e líquidos gerados nos aterros podem ser tratados para gerar outros produtos úteis.

Um deles é o digestato, resíduo sólido resultante da digestão anaeróbica, que pode ser usado como fertilizante natural em plantações e jardins.

Há também o reaproveitamento da água presente no chorume, que pode ser tratada e usada para fins industriais ou mesmo irrigação.

E o calor gerado durante a queima controlada do biogás pode ser usado em processos industriais ou em sistemas de cogeração térmica, que produzem eletricidade e calor simultaneamente.

Outra fronteira promissora para o uso do biometano é o transporte urbano. O mesmo gás gerado nos aterros pode ser comprimido (como GNC) ou liquefeito (como GNL) para abastecer veículos.

Nos Estados Unidos, por exemplo, a cidade de San Antonio, no Texas, abastece mais de 400 ônibus públicos com biometano captado de um aterro sanitário, economizando cerca de 7 milhões de litros de diesel por ano e reduzindo em até 85% as emissões de CO₂ da frota.

No Reino Unido, empresas privadas utilizam o gás produzido em aterros para abastecer caminhões de entrega. Na Suécia e na Itália, ônibus movidos a biometano já circulam pelas ruas há mais de uma década.

No Brasil, iniciativas pontuais começam a emergir. Em São Paulo, há estudos para uso do gás em frotas municipais e caminhões de coleta. Em Seropédica (RJ), o maior aterro da América Latina também produz biogás em escala e estuda sua aplicação como combustível.

Esses usos ampliam a visão do aterro como um espaço passivo de descarte.

O novo paradigma é vê-lo como uma plataforma tecnológica, capaz de gerar energia, fertilizante, água tratada e calor, um núcleo de economia circular dentro da cidade.

A energia gerada pelo biometano chega à rede: do aterro à tomada, com zero emissão de carbono
A energia gerada pelo biometano chega à rede: do aterro à tomada, com zero emissão de carbono (Claudio Gatti/VEJA)
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