Do aterro à tomada: a usina que gera eletricidade com gás do lixo em SP
Em Paulínia, usina termelétrica usa o metano do lixo para gerar eletricidade, reduzindo emissões e apontando caminhos para a transição energética brasileira
À primeira vista, o cenário é comum. Quase 500 caminhões despejam, diariamente, 4 500 toneladas de resíduos em uma imensa área de Paulínia, no interior de São Paulo.
Os detritos são produzidos pelos cinco milhões de moradores de Campinas e do entorno, uma região altamente industrializada e crucial para a economia nacional. O cheiro é forte, o calor do solo é palpável, e o movimento não para.
Por trás da rotina de um dos maiores aterros sanitários de São Paulo, está em curso uma revolução silenciosa e promissora no uso de energia limpa no Brasil. A reportagem visitou o local como parte da Expedição VEJA, que está rodando o Brasil para conhecer projetos inovadores de sustentabilidade e destacar temas relacionados à agenda da COP30, a Conferência do Clima da ONU que acontecerá em novembro em Belém, no Pará.
Localizada em Paulínia, uma das cidades que compõem o polo econômico e industrial do interior paulista, a Usina Termelétrica (UTE) Paulínia Verde marca uma nova etapa na história do lixo urbano brasileiro.
Em vez de simplesmente enterrar os resíduos e liberar gases do efeito estufa na atmosfera, a usina capta o metano gerado pela decomposição da matéria orgânica e o transforma em eletricidade.

O projeto é apontado como um modelo de economia circular: reaproveita gases poluentes, gera energia limpa, reduz emissões e ainda contribui com créditos de carbono.
A proposta é simples, mas o impacto é profundo.
O metano, gás produzido quando restos de comida, folhas e papel se decompõem sem contato com oxigênio, tem um poder de aquecimento global cerca de 25 vezes maior do que o dióxido de carbono.
Em vez de deixá-lo escapar ou queimar, a tecnologia instalada no aterro de Paulínia faz o seguinte: capta o gás por uma rede de dutos subterrâneos, purifica esse biogás até transformá-lo em biometano, e, então, o injeta em geradores térmicos que produzem eletricidade firme, renovável e de baixo carbono.
“É uma tecnologia simples, barata e extremamente poderosa. Pode tirar comunidades da vulnerabilidade energética e econômica”, diz José Maria da Silveira, do Centro de Estudos em Economia Aplicada, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
“O biogás é transição energética com justiça social. É uma das soluções mais coerentes que temos diante da crise climática”.

O processo funciona assim: o lixo é depositado e coberto com terra, criando um ambiente sem oxigênio. Bactérias naturalmente presentes começam a decompor o material, liberando uma mistura de gases.
Essa mistura é coletada por 35 quilômetros de tubos estrategicamente instalados no solo e enviada para uma central de purificação.
Ali, são removidas impurezas como o CO₂ e o enxofre, transformando o biogás em biometano, um gás limpo e de alto valor comercial. A usina produz 22 megawatts.
“Você constrói um sistema de captação no próprio aterro. Leva esse biogás a uma estação. Ali, ele recebe um tratamento até atingir uma pureza de 90%”, diz Alexandre Americano, da Mercurio Partners, responsável pela operação da usina juntamente com a Orizon e o Grupo Gera.
“Esse gás, por sua vez, alimenta os geradores, produzindo a energia elétrica que chega até nossas tomadas”, prossegue Americano.
A usina de Paulínia gera 22 megawatts por hora, energia suficiente para abastecer cerca de 500 000 pessoas. Essa produção segue por oito quilômetros de linhas de transmissão, onde chegar à subestação do Sistema Interligado Nacional.
O projeto saiu do papel em 2021, quando uma seca prolongada fez baixar os reservatórios das principais hidrelétricas do país, fazendo reaparecer o fantasma de um racionamento nos moldes do que ocorreu duas décadas atrás.
Desde então, a termelétrica verde integra o sistema brasileiro com o intuito de reforçar e diversificar nossa matriz energética.
“Em 2003, o Brasil tinha apenas duas indústrias do tipo instaladas. Hoje, já ultrapassamos 800. Isso mostra como essa tecnologia cresceu de forma silenciosa. E principalmente no campo, onde ela faz toda a diferença”, diz Carolina Bueno, pesquisadora do Earth and Planetary Sciences, da Universidade da Califórnia.
“Em tempos de emergência climática, ter uma fonte de energia local, que não depende da hidrologia, é um trunfo. O biogás não só evita emissões de metano como transforma um passivo ambiental, o resíduo, em ativo energético”, diz Bueno.

Para garantir que o gás coletado seja de qualidade e possa abastecer a usina, é necessário realizar a verificação diária através de poços instalados no aterro. Computadores checam, em tempo real, o gás que viaja pela rede de dutos.
A operação tem características complexas, entre eles coordenar a captação do biogás em áreas onde há despejo de lixo pelos caminhões que chegam ao aterro.
Fatores externos, como a chuva ou a temperatura mais baixa, podem reduzir a quantidade de gás emitida. Mas não há uma oscilação grande, que ameace nossa operação”, garante Douglas Ramboni, coordenador de biogás e energia.
O engenheiro afirma ainda que um aterro pode produzir gás em nível suficiente para ser comercializado até uma década depois do aterro ser desativado, o que reforça a viabilidade de projetos desse tipo.
Ramboni também é responsável por acompanhar de perto a expansão da usina, que vai ampliar a capacidade de produção de biometano.
“Desta vez, porém, o produto será comercializado como combustível, podendo ser utilizado para abastecer automóveis, por exemplo”.

“Todo aterro que possua uma quantidade razoável de resíduos capaz de gerar gás pode se tornar uma fonte de eletricidade a um custo muito baixo”, diz Caio Takase, gerente geral da usina.
Apesar de o Brasil consumir cerca de 52 milhões de metros cúbicos de gás natural por dia, segundo dados da ABEGÁS, apenas 1,4% desse volume vem de fontes renováveis como o biometano.
A matriz do gás natural no Brasil é quase totalmente fóssil, 99%, segundo estimativas do setor.
Nesse cenário, os resíduos sólidos e orgânicos surgem como estrela da transição energética, já que podem ser convertidos em gás natural renovável (GNR) por meio da purificação do biogás gerado em aterros, propriedades rurais e estações de tratamento.
Os principais operadores de aterros sanitários do país já se movimentam para ampliar a produção.
“Transformamos os aterros no que chamamos de ecoparques. Neles, o lixo deixa de ser fim de linha para virar matéria-prima de novos ciclos produtivos”, afirma Milton Pilão, presidente da Orizon.
“Hoje, 11% de todo o lixo coletado no Brasil passa por nossas mãos. Estamos em 12 estados e em franca expansão”, completa.
A expectativa é que, nos próximos cinco anos, o volume de biometano salte para algo entre 5 e 6 milhões de metros cúbicos por dia, multiplicando a oferta atual por mais de sete vezes.
Em um cenário otimista, o Brasil poderia produzir até 12 milhões de metros cúbicos diários a partir de todo o seu resíduo disponível, ou seja, quase 15 vezes mais do que produz hoje.
Esse avanço tem implicações diretas para a indústria e a logística nacional.
O biometano pode substituir o gás natural fóssil no setor industrial e, principalmente, o diesel na frota de caminhões, que é hoje o motor da economia brasileira, mas também uma das principais fontes de emissões de poluentes.
Segundo a ANP, há 35 novos projetos de usinas de biometano em processo de autorização. Já a Abiogás projeta que, até 2032, o Brasil terá capacidade para produzir até 120 milhões de metros cúbicos por dia, o suficiente para impulsionar a descarbonização de setores chave da economia.
Prática já é comum nas economias mais avançadas
Internacionalmente, os exemplos se multiplicam. Em Plessis-Gassot, na França, um antigo aterro foi transformado em uma central de energia capaz de gerar eletricidade para 40 mil residências, além de aquecer parte de uma cidade vizinha.
No Reino Unido, o aterro de Pitsea produz 16 MW, o suficiente para abastecer 14 000 lares. E em Western Isles, na Escócia, uma planta piloto transforma resíduos urbanos em combustível sólido para aquecimento comunitário.
O que une todos esses exemplos é a mesma lógica: transformar um problema urbano em solução.
Com a crescente demanda por fontes renováveis, a pressão para reduzir as emissões de gases do efeito estufa e a necessidade de diversificar a matriz elétrica brasileira, o biogás desponta como uma alternativa estratégica.
Ele é renovável, produzido localmente, gera empregos, reduz a dependência de combustíveis fósseis e ainda mitiga impactos ambientais.

Além da energia: o que mais pode nascer dos aterros?
O aproveitamento energético do lixo não se limita ao biometano. Muitos dos resíduos sólidos e líquidos gerados nos aterros podem ser tratados para gerar outros produtos úteis.
Um deles é o digestato, resíduo sólido resultante da digestão anaeróbica, que pode ser usado como fertilizante natural em plantações e jardins.
Há também o reaproveitamento da água presente no chorume, que pode ser tratada e usada para fins industriais ou mesmo irrigação.
E o calor gerado durante a queima controlada do biogás pode ser usado em processos industriais ou em sistemas de cogeração térmica, que produzem eletricidade e calor simultaneamente.
Outra fronteira promissora para o uso do biometano é o transporte urbano. O mesmo gás gerado nos aterros pode ser comprimido (como GNC) ou liquefeito (como GNL) para abastecer veículos.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a cidade de San Antonio, no Texas, abastece mais de 400 ônibus públicos com biometano captado de um aterro sanitário, economizando cerca de 7 milhões de litros de diesel por ano e reduzindo em até 85% as emissões de CO₂ da frota.
No Reino Unido, empresas privadas utilizam o gás produzido em aterros para abastecer caminhões de entrega. Na Suécia e na Itália, ônibus movidos a biometano já circulam pelas ruas há mais de uma década.
No Brasil, iniciativas pontuais começam a emergir. Em São Paulo, há estudos para uso do gás em frotas municipais e caminhões de coleta. Em Seropédica (RJ), o maior aterro da América Latina também produz biogás em escala e estuda sua aplicação como combustível.
Esses usos ampliam a visão do aterro como um espaço passivo de descarte.
O novo paradigma é vê-lo como uma plataforma tecnológica, capaz de gerar energia, fertilizante, água tratada e calor, um núcleo de economia circular dentro da cidade.
