Uma aposta no escuro
A Eletrobras privatiza a mais deficitária de suas distribuidoras de energia, mas os compradores não inspiram a segurança esperada pelo setor
O governo comemorou muito quando, na segunda-feira 10, a Eletrobras Amazonas foi privatizada. Por falta de interessados (e alguns percalços jurídicos), o leilão da distribuidora de energia elétrica já havia sido adiado três vezes. O sucesso na venda da empresa resolveu dois problemas de uma só vez: livrou a Eletrobras, a controladora, de uma subsidiária endividada e mal administrada, o que aumenta seu valor de mercado em uma futura privatização, e ainda afastou o risco real de que a empresa fosse liquidada e deixasse o Estado do Amazonas no escuro. Mas nem tudo são flores.
O consórcio vencedor — o único a ofertar lances no leilão — é formado pelas empresas Oliveira Energia e Atem e tem um passado recheado de problemas com a Justiça. Não bastasse isso, há ainda um evidente conflito de interesses no negócio, uma vez que as duas companhias têm contratos com a distribuidora — a primeira gera energia em regiões isoladas do Amazonas e a segunda fornece combustível às usinas térmicas do estado. E, para complicar, não está claro como a situação será conduzida a partir de agora.
A venda da empresa significa que o consórcio vencedor será responsável por sua gestão e por todos os lucros ou prejuízos que ela registrar daqui para a frente. Ótimo. O problema é o passado. A Atem já foi alvo de investigações do Ministério Público por irregularidades nos contratos, firmados sem licitação, com a Eletrobras Amazonas. E também trava uma disputa com a Petrobras e outras fornecedoras de combustível, que a acusam de receber generosas isenções fiscais do governo estadual para atuar em parceria com a Eletrobras Amazonas. Basta voltar um pouco mais no tempo para achar outros enroscos. Em 2011, dois dos donos da Atem, Miquéias de Oliveira Atem e Dibo de Oliveira Atem, foram condenados por formação de cartel em postos de gasolina. Miquéias chegou a ser preso.
Já a Oliveira Energia, que possui também contratos de fornecimento emergencial de energia em Roraima, é investigada por repassar dinheiro à família do senador Romero Jucá. Coincidentemente ou não, a Oliveira Energia e a Atem arremataram, em lance único, a Boa Vista Energia, distribuidora roraimense que também padecia da influência de políticos locais. VEJA questionou a Eletrobras sobre a escolha das empresas no consórcio e sobre a verificação do histórico das duas, mas não obteve resposta.
Quando as privatizações no setor de energia começaram, ainda na década de 90, o governo não teve sucesso em repassar as distribuidoras dos estados mais pobres para a iniciativa privada. O problema foi, então, jogado no colo da Eletrobras. A concessão das seis distribuidoras era para ser temporária, mas durou duas décadas. Em 2016, os acionistas da Eletrobras decidiram dar um basta nessa situação. A União teria de leiloá-las, ou elas seriam liquidadas — jargão financeiro para o encerramento de uma empresa. A ameaça era grave, pois a dívida bilionária precisaria ser assumida pela União e o fornecimento de energia poderia ser interrompido, o que deixaria estados inteiros no escuro. O governo de Michel Temer chegou a se preparar para essa hipótese, depois que o Senado rejeitou um projeto de lei que ditava as regras de venda das distribuidoras, em outubro. A decisão não impedia a privatização, mas não dava a segurança jurídica necessária para atrair interessados da iniciativa privada. Para emendar a situação, o governo publicou uma série de medidas provisórias que criavam condições especiais para os leilões. Uma delas foi repassar a quase totalidade da dívida acumulada pelas distribuidoras para a conta de luz de todos os consumidores brasileiros.
Mesmo assim, a Eletrobras Amazonas demorou para encontrar interessados. É fácil entender o porquê. Seus índices de perda de energia e inadimplência somados chegam a quase 50% do total. Isso significa que metade de toda a produção que é entregue pela distribuidora não gera nenhum retorno financeiro. A perda é decorrente do roubo de energia (os famosos “gatos”, feitos muitas vezes por funcionários da própria distribuidora) e de uma estrutura de linhas antiquada, que não passa por manutenção. Entre 2012 e 2016, a empresa acumulou um prejuízo de mais de 10 bilhões de reais. Como a Eletrobras era responsável pela concessão, foi ela que assumiu o mico. E, tratando-se de uma estatal, a maior parte do rombo foi, no fim das contas, coberta com dinheiro dos impostos pagos pelo contribuinte. Embora atendesse um mercado relativamente pequeno, cerca de 900 000 consumidores, a Eletrobras Amazonas acumulou uma dívida de mais de 20 bilhões de reais. Graças às manobras do governo Temer para aumentar a atratividade da estatal, o consórcio que venceu o leilão arcará com apenas 10% da dívida total, cerca de 2 bilhões de reais.
Especialistas do setor veem com preocupação a entrada da Atem e da Oliveira Energia na Eletrobras Amazonas, mas ponderam que agora, com a realização do leilão, será mais fácil fiscalizar a gestão da empresa. A Aneel, agência responsável pelo setor de energia elétrica, terá autonomia para punir eventuais ineficiências ou abusos. Trata-se de uma virada de página nessa história obscura de uso da máquina pública para fins escusos. No entanto, dado o passado dos personagens envolvidos e suas conexões, é necessário manter a vigilância.
Publicado em VEJA de 19 de dezembro de 2018, edição nº 2613