Terra dos desiguais
Estudo revela o tamanho da brutal diferença de remuneração dentro do funcionalismo
A redução do tamanho do Estado brasileiro é uma das principais bandeiras do presidente Jair Bolsonaro. É uma ideia que guarda estreita relação com a sua prioridade “número zero”: uma reforma da Previdência abrangente, que inclua os servidores públicos e os militares. As declarações recentes de Bolsonaro e de militares que ocupam cargos estratégicos, no entanto, mostram que alguns equívocos que já constavam do projeto previdenciário encaminhado pelo ex-presidente Michel Temer parecem persistir. Um dos mais importantes é a imposição da maior parcela de sacrifício à população e à base da pirâmide do funcionalismo, enquanto exceções são abertas para proteger a elite dos servidores e os militares. Se aprovada nesses termos, a proposta vai ampliar a desigualdade em um dos países mais desiguais do mundo. Um estudo recém-divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) revela a dimensão do fosso salarial que existe dentro da máquina pública. A discrepância é alarmante e deveria ser considerada no debate tanto sobre a redução do Estado como sobre a mudança das regras da Previdência.
A chamada elite do funcionalismo é o grupo formado por juízes, procuradores e parlamentares, que ganha em média até cinco vezes mais do que aqueles servidores que estão na linha direta com os cidadãos diariamente, como professores, agentes de saúde, policiais e bombeiros. Os dados do rendimento mensal foram compilados e disponibilizados pelos pesquisadores Felix Lopez e Erivelton Guedes, no Atlas do Estado Brasileiro. Trata-se de uma radiografia inédita das ocupações do setor público em suas três esferas — federal, estadual e municipal —, com a evolução ao longo de duas décadas (1995 a 2016).
O campeão da remuneração é o trabalhador do Judiciário federal (juízes e procuradores, principalmente), com salário médio de 15 800 reais mensais. Frise-se que esse valor não contabiliza gratificações, auxílios e outros penduricalhos tão frequentes para a classe — e isso significa que, na prática, seus rendimentos são ainda maiores. Logo abaixo, estão os servidores do Legislativo federal (congressistas e seus assessores), com rendimento médio de 12 900 reais por mês. Na posição mais baixa do ranking encontram-se os servidores do Executivo municipal, com renda média de 3 000 reais mensais. Professores, médicos e enfermeiros representam 40% desse grupo. Nos estados, as três classes equivalem a 60% dos funcionários quando somados aos agentes que trabalham com segurança pública, como policiais e bombeiros.
O estudo leva em conta que o nível de escolaridade é um elemento relevante para a definição dos salários mais altos. Mas ele, por si só, não explica tamanha diferença. Quando comparados servidores dos três poderes que possuem pós-graduação, aqueles que trabalham no Judiciário ainda ganham em média mais do que os que estão no Legislativo e no Executivo.
São dados que ajudam a desmistificar conceitos arraigados no discurso de políticos e na opinião pública. “É preciso muito cuidado para não acertar o alvo errado”, diz Felix Lopez. “A população pede mais médicos, mais professores, mais policiais nas ruas. E corre-se o risco de o país fazer uma reforma do Estado com a redução do número de servidores pela redução em si, sem atentar para as consequências”, afirma. E, embora constituam uma classe numerosa, com impacto significativo principalmente nas despesas das prefeituras e dos governos estaduais, esses funcionários recebem os salários mais achatados. É um equívoco tomar uma parte do funcionalismo como se fosse o todo. “Usualmente, as pessoas falam ‘no setor público’ ou ‘no funcionalismo’, quando se referem na verdade ao funcionalismo federal, que representa só um em cada dez servidores em todo o país”, diz o pesquisador. É preciso analisar com rigor onde estão os maiores focos de dispêndio com salários, e qual o retorno de cada um deles para a população.
Os gastos com o pagamento de servidores municipais passaram de 143 bilhões de reais para 257 bilhões de reais entre 2006 e 2017, o que corresponde a um aumento de 78%. Como proporção da receita líquida das prefeituras, esse montante subiu de 40% para 46%. As despesas acompanharam um aumento expressivo do quadro de pessoal municipal no período entre 1995 e 2016: de 2,4 milhões para 6,5 milhões de servidores. Segundo Lopez, esse fenômeno se deve à transferência de competência do serviço público da União e de estados para os municípios, em especial nas áreas ligadas a saúde, educação e assistência social. É um processo gradual que teve início da década de 70 e se acentuou com a Constituição de 1988. Outro fator importante para o inchaço foi a inconsequente criação de quase 1 500 municípios entre 1985 e 2003.
A divulgação em detalhes da estrutura de cargos, remunerações e atribuições do funcionalismo e o debate das informações com a sociedade, com transparência, são fundamentais para que se possa fazer uma reforma que torne o Estado brasileiro mais eficiente, em vez de ser um instrumento que, ao manter privilégios, apenas agrave as desigualdades.
Publicado em VEJA de 30 de janeiro de 2019, edição nº 2619
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