Tendência mundial por legalização da maconha anima mundo dos negócios
O mais recente anúncio que aponta para essa mudança partiu do México, país conhecido pelo conservadorismo que permeia sua cultura
Por mais que autoridades e pesquisas científicas sigam alertando sobre os danos à saúde causados pelo uso intensivo de maconha, e eles existem, a planta está, decididamente, descendo os degraus da pirâmide de drogas proibidas e se encaminhando para entrar no clube das substâncias legais. A mudança é resultado de uma nova mentalidade em relação à cannabis, impulsionada principalmente pela franca expansão de seu uso medicinal e pelo fracasso da maior parte das políticas de contenção do narcotráfico. O mais recente anúncio de legalização partiu do México, país conhecido pelo conservadorismo que permeia sua cultura: a Câmara dos Deputados aprovou por ampla maioria um projeto de lei, que agora segue para o Senado, onde o aval é certo, e para a assinatura do presidente Andrés Manuel López Obrador, aberto defensor da iniciativa liberalizante.
Também no Canadá, no Uruguai e em vários estados americanos a maconha é liberada. Em Israel, África do Sul, Geórgia e Luxemburgo o consumo é tolerado com restrições, e em 42 países, inclusive o Brasil, o uso como medicamento foi autorizado pelo governo. “Observamos nos últimos vinte anos uma mudança radical na opinião pública em relação à cannabis”, diz Kassandra Frederique, diretora da Drug Policy Alliance, entidade que advoga por reformas na lei criminal. Quando entrar em vigor, a lei da maconha no México permitirá que maiores de idade portem até 28 gramas (o equivalente ao mesmo número de cigarros) e cultivem no máximo seis pés em casa. O governo planeja que o grosso do comércio e da venda seja conduzido por pequenos agricultores e varejistas e, assim, se consiga enfraquecer um braço (o menos lucrativo, aliás) dos negócios dos brutais cartéis que controlam parte do território mexicano. O processo de legalização foi gradativo. Em 2015, a Suprema Corte deu o primeiro passo, decidindo que proibir o consumo era inconstitucional. Dois anos depois, o uso de produtos medicinais, como o canabidiol, foi liberado. A nova lei faz do México, com seus 126 milhões de habitantes, o maior mercado potencial de maconha do planeta, com capacidade de movimentar 3,2 bilhões de dólares por ano.
Do outro lado da fronteira, nos Estados Unidos, mais três estados — Nova Jersey, Arizona e a Dakota do Sul — votaram na eleição de novembro para liberar o uso recreativo, e Mississippi fez o mesmo em relação ao medicinal, elevando para dezesseis os que legalizaram e para 26 os que permitem só como remédio. Segundo especialistas, os Estados Unidos estão firmemente plantados na trilha para a liberação da maconha em praticamente todo o território, previsão confirmada por pesquisas e fatos. Levantamento do instituto Gallup mostra que a maioria tanto de democratas quanto de republicanos, adversários ferrenhos em quase tudo hoje em dia, concorda com a legalização — o Congresso, inclusive, já extinguiu as punições federais ao porte. Entre a população, 68% dos americanos são a favor, um recorde histórico. A vice-presidente Kamala Harris defendeu a liberação na campanha eleitoral. O presidente Joe Biden se diz favorável à descriminalização, mas prefere deixar a questão nas mãos dos estados. Seu secretário da Saúde, Xavier Becerra, no entanto, é notório defensor da legalização. “A decisão do México deverá aumentar a pressão por mudanças, e não só nos Estados Unidos”, diz Andrew Rudman, do centro de estudos Wilson Center, em Washington.
Do ponto de vista dos negócios, a tendência à aceitação da maconha pela sociedade está mobilizando as empresas com potencial de atuar no setor. Nos Estados Unidos, a Constellation Brands, dona da cerveja Corona, e a Altria, a maior fabricante de tabaco do mundo, acabam de anunciar a criação da Coalizão pela Política, Educação e Regulamentação da Cannabis, grupo lobista que tem como objetivo influenciar a legislação futura sobre o assunto. As duas empresas veem aí sua chance de recuperação entre os millennials, que formam a maio parte dos consumidores e que costumam rejeitar álcool e cigarros em prol da boa saúde, mas adotam a droga. Pelo contrário: impulsionado pelos jovens, o comércio da planta in natura e de uma variedade de alimentos e bebidas que contêm THC, seu princípio ativo, alcançou 18,3 bilhões de dólares em 2020, salto de 70% na comparação com 2019. O setor emprega mais de 320 000 pessoas no país e, na contramão de quase toda a indústria, registrou aumento de vagas na pandemia.
Em Israel, onde o consumo medicinal é autorizado e o recreacional é tolerado, mas não em público, apenas dentro de casa, o ex-primeiro-ministro Ehud Barak abriu uma empresa para comercializar maconha (por enquanto, só como remédio) e se tornou porta-voz da abertura em relação a seu uso. Ele prevê que, em futuro não muito distante, um em cada três habitantes do planeta estará consumindo alguma forma de cannabis — motivo pelo qual as oportunidades nesse ramo devem ser aproveitadas “agressivamente e imediatamente”. Também onde a maconha é permitida só para uso medicinal, como no Brasil e nos vizinhos Argentina, Peru, Colômbia e Chile, as chances de bons negócios são animadoras. Aqui, a indústria estima em 4 milhões o número de pacientes a ser beneficiados, gerando um mercado calculado em 4,7 bilhões de reais.
Ainda no mundo empresarial, países como Uganda, Gana, Ruanda, Lesoto e Malawi, na África, e Líbano, no Oriente Médio, continuam proibindo o consumo, mas estão autorizando o cultivo unicamente para exportação. A formalização do comércio de maconha e sua remoção do âmbito do crime organizado, no entanto, são tarefas complexas. No México, especialistas afirmam que as plantações existentes estão, todas, em território do tráfico — que, de qualquer forma, arrebanha a maior parte de seus rendimentos com a venda de cocaína e metanfetamina. “Na busca de popularidade, o governo está superestimando os efeitos da lei”, diz Falko Ernst, da consultoria International Crisis Group. Até a Holanda, pioneira na liberação da maconha, está repensando o alcance da medida diante da crescente atuação do crime organizado no país (leia o quadro). Ao que tudo indica, por mais sérios que sejam os problemas, porém, o baseado está saindo do armário para ocupar a sala principal de várias casas no exterior.
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Publicado em VEJA de 24 de março de 2021, edição nº 2730