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Queda fenomenal

Considerado um herói no Japão por ter salvado da bancarrota a Nissan e a Mitsubishi, Carlos Ghosn é preso por suspeita de fraude fiscal

Por Flávio Ismerim
Atualizado em 4 jun 2024, 16h18 - Publicado em 23 nov 2018, 07h00

Até o início de novembro, o executivo brasileiro Carlos Ghosn era venerado no Japão. A história de como um estrangeiro livrou a montadora de carros japonesa Nissan da falência em tempo recorde — revertendo um prejuízo de 5,6 bilhões de dólares em 1999, ano em que assumiu a empresa, em um lucro líquido de 2,7 bilhões de dólares já em 2000 — foi até transformada em mangá, a tradicional HQ japonesa normalmente dedicada a heróis ficcionais. Nos anos seguintes, Ghosn costurou uma aliança entre a Nissan, a francesa Renault e a também japonesa Mitsubishi, criando o maior conglomerado automobilístico do mundo, com a venda de 10,6 milhões de carros em 2017. Mas sua reputação foi destroçada na segu­nda-feira 19, quando veio a público a notícia de que Ghosn fora preso ao desembarcar no aeroporto de Haneda, em Tóquio, acusado de fraude fiscal.

Com base em delação premiada de empregados da própria Nissan, o brasileiro é acusado de ter escondido do Fisco, e também da Bolsa de Valores de Tóquio, cerca de 167 milhões de reais, metade do valor que recebeu como remuneração entre 2010 e 2015, considerando bônus e salários. As irregularidades encontradas pela promotoria de Tóquio mostram ainda que uma filial holandesa da Nissan teria gastado 67 milhões de reais na compra de imóveis de luxo para Ghosn na Holanda, na França, no Líbano e no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, onde moram a mãe e uma irmã do executivo.

Carlos Ghosn
HERÓI POP – Capa do mangá que conta a história de Ghosn na Nissan (//Divulgação)

Carlos Ghosn nasceu em Guajará-Mirim, em Rondônia, onde os pais, libaneses, prosperavam à frente de empresas no ramo agrícola e de aviação. A família se mudou para o Rio quando ele tinha 2 anos, em busca de tratamento para uma doença causada por ingestão de água insalubre pela criança. Cinco anos depois, partiram para o Líbano. Aos 17 anos, Ghosn foi estudar engenharia em Paris, enquanto seus pais voltaram para o Rio. As raízes brasileiras foram seu trunfo para obter emprego na empresa de pneus Michelin. Depois de um período trabalhando em uma fábrica na França, ele assumiu o comando da operação latino-ameri­cana da companhia, com sede no Rio, e o sucesso o alçou à presidência da Michelin nos EUA.

arte-carlos-nissan
(Arte/VEJA)

Em 1996, Ghosn colocou os pés no ramo automobilístico quando aceitou a oferta para ser vice-presidente da Renault, mas foi em 2000 que seu nome se transformou numa lenda na indústria. Um ano antes, a montadora francesa havia adquirido uma participação na Nissan e enviou Ghosn para a missão de salvar a empresa, à época com uma dívida de 17 bilhões de dólares. Ele prometeu pedir demissão caso não conseguisse gerar lucro no prazo de um ano. Fechou cinco fábricas, demitiu mais de 20 000 funcionários, reestruturou toda a companhia, e não só atingiu o objetivo como a Nissan passou a ser a montadora com a maior margem de lucro operacional do mundo.

Até a sua prisão, Ghosn acumulava a presidência dos conselhos da Renault, da Nissan e da Mitsubishi (adquirida em 2016), além de presidir a aliança formada pelas três empresas. Estava em uma cruzada para fundi-las em uma só companhia, mas encontrava fortíssima resistência do governo francês, o maior acionista da Renault, e dos orgulhosos japoneses, também preocupados em impedir a internacionalização da empresa e defender a cultura local. De tal modo que sua queda, convenientemente, agradou a todo mundo, o que despertou suspeitas de que ele possa ter sido vítima de um complô. Ghosn não tinha paciência para patriotismos, tanto que instituiu o inglês como língua oficial nas companhias. A medida deve ser revertida em breve. A Renault já nomeou um novo CEO, ainda que interino, e o presidente francês Emmanuel Macron pediu às autoridades japonesas informações sobre a investigação. Hiroto Saikawa, presidente executivo da Nissan, desculpou-se em público pelo comportamento de seu presidente do conselho, revelou que investigava Ghosn havia meses e o afastou do cargo. A Mitsubishi deve ir pelo mesmo caminho. Enquanto isso, o brasileiro — que já foi eleito por uma revista feminina japonesa o homem ideal para casar — está em uma cela com três tatames, um vaso sanitário e uma mesinha. Recebe três refeições por dia e tem direito a dois banhos por semana. Ghosn não se pronunciou sobre o episódio, e ainda vai se defender das acusações. Mas a reputação de herói japonês dificilmente será recuperada.

Publicado em VEJA de 28 de novembro de 2018, edição nº 2610

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