Prisão de Carlos Ghosn, ex-Nissan, completa um ano envolta em mistério
Advogado do executivo brasileiro diz que seu cliente foi alvo de um complô gestado por adversários dentro da montadora
Carlos Ghosn foi, durante duas décadas, o executivo brasileiro de maior notoriedade no mundo, com acesso a políticos do porte de Emmanuel Macron e Donald Trump e vencimentos anuais na casa dos oito dígitos. O que catapultou esse filho de imigrantes libaneses nascido em Porto Velho, Rondônia, ao mundo estelar da indústria de automóveis foi sua espetacular estratégia para livrar a montadora de carros japonesa Nissan da falência em tempo recorde, uma façanha tão notável que, no Japão, fez com que ele se tornasse herói de mangá, a tradicional história em quadrinhos nipônica. Ghosn assumiu a montadora em 1999, quando a Renault, onde trabalhava, comprou parte das ações da empresa japonesa. Recebeu uma companhia com um prejuízo de 5,6 bilhões de dólares e já no ano seguinte entregou um lucro líquido de 2,7 bilhões de dólares. A partir dessa conquista, dedicou-se à costura da futura fusão entre a Nissan, a Renault e a também japonesa Mitsubishi. O objetivo era criar o maior conglomerado automobilístico do mundo, com a venda de mais de 10 milhões de veículos. Há um ano, porém, sua reputação virou pó. Na noite de 19 de novembro de 2018, Ghosn foi preso ao desembarcar de um jatinho no aeroporto de Haneda, em Tóquio, acusado de fraude fiscal. Enfrentou 107 dias em uma solitária, com direitos restritos a um tatame como cama e apenas dois banhos semanais. Foi solto sob fiança de 9 milhões de dólares, mas acabou detido novamente após quatro semanas. Depois de mais vinte dias de detenção, foi liberado para cumprir prisão domiciliar na capital japonesa, regime que o proíbe de acessar a internet e se comunicar com a esposa. “Ele foi vítima de um complô do governo japonês com altos executivos da Nissan contrários à fusão com a Renault”, acusa o advogado Takashi Takano, o defensor de Ghosn no processo, em entrevista por telefone a VEJA.
A denúncia da equipe de Takano é grave e de difícil comprovação, mas há elementos que lhe dão verossimilhança. Quando desceu do jato particular da Nissan (de matrícula N155AN) e foi informado de que seria preso, o executivo imediatamente ligou para seu diretor jurídico, Hari Nada, por quem tinha grande apreço. O que Ghosn não sabia, mas viria a público horas depois em uma coletiva de imprensa, é que Nada comandava um time de investigadores que vasculhou as movimentações financeiras do chefe — e entregou os resultados às autoridades. Não era segredo que os japoneses resistiam ferozmente à ideia de Ghosn de fundir as tradicionais marcas Nissan e Mitsubishi sob a liderança da Renault — empresa que, como agravante, tem como acionista o governo francês. Nas semanas seguintes, foi revelado que o copresidente da Nissan, Hiroto Saikawa, vinha trabalhando com afinco para redesenhar a aliança com os europeus de uma maneira que impedisse a futura fusão. E mais: que ele sabia das investigações a respeito de Ghosn. A forma como o executivo vem sendo tratado — a solitária, a demora de meses para apresentar uma acusação formal e o fato de uma investigação privada servir de base às acusações — também é usada como indício de arbitrariedade contra o brasileiro. Takano argumenta que há farta documentação que comprova a inocência de seu cliente, e esse seria o motivo para a demora no julgamento.
As acusações contra Ghosn são quatro, e vieram em etapas. A primeira delas diz respeito à suposta sonegação de impostos sobre cerca de 44 milhões de dólares, metade do valor que teria recebido como remuneração entre 2010 e 2015, incluindo bônus e salários. A denúncia foi feita por ex-executivos da companhia em sistema de delação premiada. Ghosn também é acusado de usar os recursos corporativos indevidamente. Entre os benefícios recebidos — e não declarados — estariam residências de luxo no Rio de Janeiro, Paris, Amsterdã e Beirute, além da festa que celebrou o casamento e o aniversário de 50 anos da noiva, a americana Carole Ghosn, no Palácio de Versalhes, na França (veja a entrevista). Com a prisão, a Nissan demitiu o então CEO sumariamente, e pouco tempo depois ele foi destituído da liderança da Mitsubishi. A saída da Renault foi um pedido do próprio Ghosn, em janeiro deste ano. Há ainda denúncias de desvio de dinheiro para empresas de amigos e transferência de um prejuízo de milhões de dólares em um mau investimento pessoal para a Nissan.
Apesar de alegar inocência, Ghosn fechou um acordo com o governo dos Estados Unidos para encerrar uma ação civil que o acusava de ocultar parte de seus salários — iniciativa que incluiu a Nissan como ré. Ele concordou em pagar multa de 1 milhão de dólares e se comprometeu a não assumir cargos executivos nem no conselho de companhias pelos próximos dez anos. O acordo enfraquece a tese de inocência, mas seus advogados insistem que os processos no Japão estão repletos de ilegalidades. Procuradas, as autoridades japonesas não se pronunciaram. Tampouco as empresas atenderam aos pedidos de entrevista. Para tentar resolver o problema, classificado como político, a família de Ghosn apelou para Macron (Ghosn tem cidadania francesa e libanesa, além da brasileira), Trump e também Jair Bolsonaro com o pedido de que os chefes de Estado intercedam junto ao primeiro-ministro japonês Shinzo Abe para, ao menos, marcar o julgamento. Em nota, o Itamaraty afirmou que presta assistência consular ao executivo.
Independentemente da culpa ou inocência de Ghosn, o escândalo que envolve seu nome foi um desastre corporativo. A fusão entre Renault, Nissan e Mitsubishi de fato naufragou. Mas o mercado entendeu que as denúncias e sua prisão foram extremamente prejudiciais às três empresas — todas amargam perdas de cerca de 30% em valor de mercado. “Ghosn é um visionário, foi um dos primeiros a debater carros elétricos. As empresas perderam um grande líder”, avalia Milad Kalume, sócio da consultoria automotiva Jato Dynamics. Não houve perdedor maior, entretanto, do que o próprio Ghosn.
Publicado em VEJA de 20 de novembro de 2019, edição nº 2661