Por que a onda de novatos na bolsa pode gerar um ciclo virtuoso no Brasil
Em meio à pandemia, um fenômeno inédito: mais de 900 mil brasileiros decidiram se aventurar no mercado de ações
No mercado de ações brasileiro, algumas práticas são tão arraigadas que apenas um cataclismo é capaz de alterá-las. É o caso das reuniões de resultados das empresas de capital aberto, normalmente exposições protocolares, enfadonhas e repletas de números, realizadas por teleconferências direcionadas a um público restrito de iniciados. No último dia 18, a rede varejista Magazine Luiza subverteu um roteiro que já utilizava com regularidade em suas apresentações. Os executivos da empresa dedicaram duas horas da reunião a explicações sobre o impacto da pandemia do coronavírus nos negócios. Depois expuseram de forma clara e didática os resultados contábeis, principalmente o crescimento do e-commerce em relação à média dos concorrentes (182% contra 70%), o aumento da receita líquida em relação ao mesmo período no ano passado (30%) e o prejuízo provocado pela quarentena em relação a 2019 (de 64 milhões de reais) — consequência da decisão da empresa de não demitir funcionários nem fechar lojas.
A mudança no discurso dos executivos do Magazine Luiza não é um capricho ou modismo, mas uma necessidade. Em julho de 2019, a rede varejista, com sede em Franca, no interior de São Paulo, tinha entre seus investidores, 33 176 pessoas físicas com ações da empresa. Em 27 de julho deste ano, esse contingente passou para 259 121 pessoas. São novatos que buscam oportunidades de lucrar no mercado de capitais, têm pouca ou nenhuma familiaridade com seus mecanismos e sutilezas e são ávidos por informações sobre suas aplicações. “Comunicar de maneira correta, em uma linguagem simples, passou a ser uma necessidade. É uma forma de ajudar o investidor a entender a estratégia e o propósito da empresa”, explica Vanessa Rossini, responsável pelo RI da varejista paulista. Não à toa, depois da conferência, as ações da empresa fecharam em 89,50 reais, valor 10% maior que o registrado no dia anterior.
Os meses de pandemia, com suas quarentenas, jornadas de home office e isolamento social, registraram um fenômeno sem precedente no mercado de capitais brasileiro. Entre março e julho, mais de 900 000 investidores individuais registraram o CPF na B3, a antiga Bolsa de Valores de São Paulo. Trata-se de um número assombroso por vários aspectos. Na década compreendida entre 2007 e 2017, os investidores com esse perfil não ultrapassavam 620 000 pessoas. Em 2018, o ano fechou com cerca de 800 000, mas foi apenas no ano seguinte que a tendência de crescimento tomou fôlego — e de forma inédita. Em abril de 2019, a marca de 1 milhão de investidores foi rompida e cresceu de tal forma que hoje, um ano depois, praticamente alcançou o triplo desse número (2,82 milhões de investidores).
A explicação mais óbvia para tanto interesse por ações são as quedas consecutivas na taxa básica de juros. Com a redução da Selic, de 6,5%, em julho do ano passado, para os atuais 2%, os rendimentos das aplicações de renda fixa — as preferidas do poupador brasileiro — caíram fortemente. Dessa forma, a poupança e os títulos do Tesouro passaram a perder para a inflação projetada para o ano, o que fez com que até mesmo os investidores mais conservadores percebessem que era hora de migrar para o mercado de ações.
Paradoxalmente, o solavanco sofrido pelo mercado de capitais no princípio da epidemia — seguido de um lento processo de recuperação — acabou ajudando a popularizar as aplicações em ações. Com o valor mais em conta em decorrência do choque da disseminação do coronavírus, os papéis tornaram-se atraentes para quem queria se iniciar no ramo mas aguardava uma oportunidade. Com a pandemia, esse momento chegou. “Foi depois da queda, em março, que decidi investir”, explica o advogado Eric Rocha, 30 anos. “Escolhi empresas que tinham mais chances de recuperação e em setores que poderiam ser menos afetados pelo isolamento social”, recorda. Entre as escolhas de Rocha estão justamente as ações do Magazine Luiza, que se valorizaram 220% desde o baque da Covid-19.
A euforia em torno do mercado de capitais dificilmente existiria sem as perspectivas de retomada econômica do país, atrelada ao arrefecimento da pandemia. A promessa das reformas estruturais a ser realizadas pelo Governo Federal, as sucessivas revisões nos cenários até então pessimistas para o crescimento do país, bem como a recuperação mais rápida de setores como o de imóveis, varejo, indústria, despontam como indicadores de ganhos futuros. A aposta de quem compra agora é que o país vai conseguir realizar uma agenda que promova crescimento, com respeito ao teto de gastos, e assim atraia não somente os investidores nacionais, mas traga de volta os estrangeiros que acabaram saindo. Do início do ano até o último dia 21, os investidores internacionais retiraram 82 bilhões de reais da bolsa, enquanto as pessoas físicas injetaram outros 51,7 bilhões de reais no mesmo período. Sem esse novo contingente, aliás, seria improvável a recuperação do Ibovespa, que chegou a perder quase 60% do valor na época da eclosão da pandemia, e hoje está novamente em torno dos 100 000 pontos.
Lucrar com o aumento desse patamar é a expectativa de investidores como o contador Murilo Duarte, 25 anos, ex-morador de uma favela na Zona Oeste de São Paulo transformado em celebridade da internet depois de começar a aplicar na bolsa e produzir vídeos sobre o assunto. “Muita gente começou a ver a bolsa e os ganhos com ações como uma maneira de construir uma espécie de colchão para enfrentar dificuldades e ter uma renda maior”, explica ele, hoje instalado numa casa com piscina em Cotia, na Grande São Paulo. Com suas dicas em linguagem direta, Duarte encarna uma faceta até então inédita do mercado de capitais nacional. Os dados da B3 mostram que 72% desse novo contingente de investidores têm entre 16 e 45 anos — há quatro anos, os investidores nessa faixa etária não passavam de 21%. O valor médio da primeira aplicação dessa turma é de 1 622 reais, e 30% dos novatos entra no mercado com menos de 500 reais. “A mudança geracional, somada a um novo cenário macroeconômico brasileiro, puxa esse movimento de forma importante”, afirma Felipe Paiva, diretor de relacionamento com clientes da B3. A tecnologia é outro fator que vem ajudando a impulsionar o fenômeno. Adeptos do uso maciço de aplicativos de investimentos e das redes sociais para obter informações, os calouros do mercado costumam dedicar-se tanto a cursos on-line oferecidos por corretoras e instituições financeiras como frequentar fóruns de debates no Twitter e Facebook. Celebridade instantânea do Instagram, a digital influencer Gabriela Pugliesi, de 34 anos, tem procurado reconstruir sua imagem pública na forma de divulgadora do novo ambiente de investimentos. Desde que caiu em desgraça depois de surgir em um vídeo falando barbaridades sobre a pandemia em uma festa, ela descobriu a nova atividade com amigos do mercado financeiro. Adorou. Passou a construir uma carteira de ações e ocasionalmente opera no day trade, modalidade mais arriscada de investimento, que busca lucro a curto prazo. “É um aprendizado diário, porque entender de bolsa significa entender a economia mundial”, raciocina.
Gênio dos investimentos e ídolo dos profissionais do ramo, o americano Warren Buffett é especialista em frases que costumam ser seguidas como dogmas por seus fãs mundo afora. Sobre o mercado de capitais, ele escreveu recentemente que o sucesso “não requer quociente de inteligência estratosférico, visão empresarial incomum nem informações privilegiadas”. Necessita-se apenas, diz o mestre, “de uma estrutura intelectual coerente para tomar decisões e ser capaz de não deixar que as emoções corroam esse arcabouço”. Muitos novatos, animados com as perspectivas de ganhos, ignoram tal regra de ouro — e quebram a cara. No início do ano, uma das empresas mais badaladas entre os especialistas que dão dicas de investimentos nas redes sociais era o gigante de educação Cogna (antiga Kroton), que prometia abrir o capital de uma subsidiária na Nasdaq, em Nova York. A engenheira civil Mayza Melo, 32, se animou com o prognóstico e comprou ações valendo pouco mais de 6 reais cada uma. O papel chegou a bater quase 10 reais, mas, animada com previsões como as feitas pelo investidor e tuiteiro Rafael Ferri, ela esperava que chegasse a 12 reais para vender. “Resolvi segurar. Hoje, está valendo menos do que eu paguei”, afirma. “Foi uma grande lição para mim”.
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Clique e AssineEmbora óbvio, vale sempre lembrar: a renda variável não varia apenas para cima. Para quem descobriu a bolsa na pandemia, recomendam-se duas atitudes: sangue-frio e paciência. “As pessoas souberam entrar na baixa e agora precisam ter a calma necessária para esse tipo de investimento”, afirma Betina Roxo, estrategista-chefe da Rico Investimentos. “Focar resultados de médio e longo prazo é um bom jeito de encarar as incertezas e os riscos, que sempre vão existir no mercado financeiro”, conclui. Considerado o maior investidor individual da B3, Luiz Barsi Filho, presidente do Conselho Regional de Economia de São Paulo (Corecon-SP), demonstra preocupação com uma possível enxurrada de especuladores no mercado de ações. A cartilha do sucesso, segundo ele, é formada por dois fatores: a oportunidade de compra e, sobretudo, o estudo dos papéis, por meio da relação entre o preço da ação e o lucro das companhias. “Quanto mais alta a relação preço e lucro, mais o investidor tem de se preocupar, pois, numa eventual anomalia do mercado, ele tende a ficar na berlinda e poderá penar para recuperar o seu dinheiro”, ensina.
O súbito afluxo de investidores iniciantes e com pouco capital alocado em ações é novidade no Brasil, mas costuma ser um traço recorrente de países com maior tradição no mercado de capitais. Nos Estados Unidos, 55% da população investe no mercado de renda variável e 80% da riqueza das famílias americanas está aplicada em ações. Na Índia, são mais de 27 milhões de investidores na bolsa local, sediada na metrópole de Mumbai. Ter uma fatia significativa da população investindo em ações é sinal de maturidade e desenvolvimento econômico e de melhores condições de competitividade para as empresas locais. Em vez de dependerem de financiamento estatal ou bancário, elas podem emitir ações para bancar expansões, remunerar os seus donos ou pagar dívidas. Trata-se de um processo de geração de riqueza que ajuda a economia como um todo. Das 395 empresas listadas na bolsa brasileira, nove realizaram suas ofertas inicias de ações neste ano, movimentando 25 bilhões de reais. Outras duas dezenas estão na fila para abrir capital. A estimativa é que 2020 feche com o maior número de IPOs (a sigla em inglês para oferta pública inicial) desde 2007, quando aconteceram mais de sessenta operações.
As circunstâncias favoráveis têm atraído empresas de diversos setores, como a Ambipar, de saneamento básico, que levantou 1 bilhão de reais em oferta realizada em julho, e o grupo carioca Soma, dono de marcas como Farm e Animale, que estreou com uma arrecadação de 1,8 bilhão de reais no mesmo mês. Entre as companhias que se preparam para abrir o capital até o fim do ano estão desde a varejista de artigos para animais de estimação Petz até a Rede D’Or, grupo de hospitais e serviços de saúde que planeja levantar mais de 15 bilhões de reais. Tradicionalmente, operações de abertura de capital têm participação relativamente restrita de investidores pessoa física. Ainda assim, o ano de 2020 registra um aumento significativo nesse quesito. Segundo levantamento do banco BTG Pactual, 11% dos recursos aportados nos IPOs vieram de pessoas físicas, contra 7% registrados em 2019.
A democratização dos investimentos no mercado de capitais era algo perseguido pela bolsa de valores brasileira havia muito tempo. No domingo 23, a B3 completou 130 anos de existência — uma trajetória marcada por riqueza, solavancos, quebradeiras e euforia. Fundada em 1890 como Bolsa Livre de São Paulo, concorreu por décadas com outras bolsas regionais, entre elas a primeira instituição desse tipo no Brasil, a Bolsa de Valores da Bahia, de 1817, e a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, criada em 1820 e a mais importante do país até o fim do século passado. A Bolsa de São Paulo começou a se firmar no cenário nacional a partir da década de 1960, mas foi somente quarenta anos depois, com a fusão com a Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F) e com a já enfraquecida bolsa carioca, que ela atingiu relevância. “A bolsa sempre teve um aspecto embrionário, principalmente com a concorrência da renda fixa, que sempre pagou juros elevados e com o risco mais baixo. A partir dos anos 2000, porém, começou a se livrar das amarras que atrapalhavam seu crescimento”, diz Orlando Assunção, professor de economia da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap). Um marco nessa trajetória foi a abertura de capital da empresa de cosméticos Natura, em 2004, realizada depois de dois anos sem que nenhum IPO fosse registrado na instituição.
Entusiastas da expansão do mercado de capitais acreditam que exista espaço para que a bolsa brasileira chegue a ter até 10 milhões de pessoas físicas como investidores — número calculado a partir da estimativa de que 50 milhões de brasileiros mantêm algum tipo de poupança e potencialmente podem buscar investimentos com melhor remuneração. Para que isso aconteça, a retomada econômica precisa sair dos planos. “Mais importante do que juro baixo é avanço econômico. O país precisa voltar a crescer, senão a bolsa vai começar a andar de lado”, diz o economista José Roberto Mendonça de Barros, sócio-diretor da MB Associados e ex-membro do conselho de administração da B3 quando ainda se chamava BM&F Bovespa. Só assim, com responsabilidade na condução das reformas e respeito ao teto de gastos, se garantirá o tão desejado sonho de ascensão econômica do brasileiro, transformando o país de cultura rentista em uma nação de investidores. Se o país for nessa direção, todos ganharão. Caso contrário…
Publicado em VEJA de 2 de setembro de 2020, edição nº 2702